Num mundo cada vez mais rico e opulento, a permanência da fome é um escândalo ético e um desafio social e político. A Organização das Nações Unidas considera a erradicação da fome em todo o planeta como o segundo Objetivo de Desenvolvimento Sustentável do Milênio.
Em 2015, os países que fazem parte da ONU se comprometeram a acabar com a fomeaté 2030. Apesar das dificuldades e das incertezas, um olhar sobre as experiências bem-sucedidas recentes aponta para caminhos factíveis e que devem ser trilhados por todas as nações, independentemente de convicções ideológicas e opções partidárias.
A maior parte dos especialistas no assunto concorda que, atualmente, a produção global de alimentos seria suficiente para alimentar toda a po- pulação mundial. Somos cerca de 8 bilhões de pessoas, cada uma necessitando de cerca de 1,4kg de comida por dia, ou seja, seriam necessários 3,8 bilhões de toneladas de alimentos por ano para alimentar toda essa gente – enquanto a produção mundial de alimentos está avaliada em 4 bilhões de toneladas por ano, estimando-se que as tecnologias existentes, se bem aplicadas em todas as terras agrícolas já disponíveis, permitiriam que a produção mais que dobrasse (e sem desmatar nenhum território a mais). Contudo, a perda de alimentos por desperdício é estimada entre 33% e 44%: a maior parte no consumo, nos países ricos; ou na produção, devido a limitações de conservação e armazenamento, nos países pobres.
De qualquer modo, em termos mundiais, o problema da fome não é de pouca produção de alimento, mas, sim, de muita concentração de riqueza. Por isso, acreditava-se que a erradicação da fome no mundo, um dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável do Milênio, pactuado por todos os países-membros da ONU, seria um alvo bastante factível, mas que vai se revelando cada vez mais difícil. As Nações Unidas estimaram que um décimo da população global, cerca de 828 milhões de pessoas, estava subalimentada em 2021. Particularmente na África e no Sul e Sudeste da Ásia, a quantidade de pessoas em condições de insegurança alimentar permanece tragicamente grande. Guerras, catástrofes climáticas e desigualdade de renda são as principais causas do problema. As guerras destroem tanto a estrutura produtiva quanto os canais de distribuição dos produtos, particularmente nos países pobres, dificultando o acesso da população aos alimentos. A guerra da Ucrânia, por exemplo, comprometeu o fornecimento de insumos agrícolas para a maioria dos países, levando a um aumento dos preços dos alimentos e afetando os mais pobres. Catástrofes climáticas, como as grandes secas que têm sido cada vez mais frequentes em várias regiões do globo, também prejudicam as safras e, mais uma vez, afetam os mais pobres.
Ações bem-sucedidas. Nem tudo é má notícia neste campo. Muitos países conseguiram bons resultados em seus esforços para erradicar a fome. Essas ações irão depender, obviamente, da realidade de cada país e dos desafios que enfrenta. Países em guerra, por exemplo, precisam de paz – e aqui temos um dos maiores problemas do cenário internacional, pois o caminho para a paz é sempre difícil e exige grande habilidade de negociação.
Em regiões em que a produção de alimentos é deficitária, estudos mostram a importância dos programas de desenvolvimento que priorizem a agricultura familiar sustentável, associados a sólidas políticas de promoção humana. Com diferentes enfoques, em função das peculiaridades históricas e ambientais de cada país, ações dessa natureza foram responsáveis por sensíveis reduções da fome em países como China, Camarões, Etiópia, Gabão, Gâmbia, Irã, Kiribati, Malásia, Mauritânia, Maurício, México, Filipinas e Uruguai.
Não se pode, contudo, minimizar a importância do combate à pobreza, dos programas de renda mínima e de criação de empregos. Numa realidade como a brasileira, na qual a produção agrícola é abundante, por exemplo, as desigualdades sociais – particularmente no quesito renda – e a desocupação são os “grandes vilões” responsáveis pela fome e pela desnutrição.
Saindo do Mapa da Fome. O Brasil foi considerado, em 2010, o país emergente com maior sucesso no combate à fome. Os números são expressivos: em 2002, 19 milhões de brasileiros (10,5% da população) eram considerados subnutridos, em 2013 eram 3,4 milhões (cerca de 1,7% da população) – uma redução de 82,1%! nesse período, a pobreza extrema, causa direta da situação de fome e desnutrição, foi reduzida em 75%! Com isso, o Brasil comemorou sua saída do “Mapa da Fome”, um relatório produzido pelas Nações Unidas que acompanha a situação alimentar da população nos países com maior insegurança alimentar.
Muitos fatores podem ser elencados para explicar esse sucesso, contudo dois pontos essenciais não podem ser desprezados…
Em primeiro lugar, a erradicação da fome no Brasil consolidou-se como um objetivo fundamental do governo, orientando as políticas públicas e definindo prioridades. Preferências partidárias e avaliações políticas podem nos colocar a favor ou contra determinado governo, mas temos que ter claro que, para vencer a fome e a pobreza, é necessária uma determinação firme na gestão do Estado. A vontade política, por si só, não é suficiente, sem dúvida é preciso uma gestão eficiente, um olhar realista sobre os limites e o funcionamento das estruturas econômicas. Mas, sem essa vontade decisiva, a eficiência da máquina pública e a boa gestão da economia são canalizados para o aumento dos ganhos de uns poucos ou, na melhor das hipóteses, para o lento crescimento de um bolo que nunca será dividido, conforme uma analogia que foi muito conhecida no passado (teríamos que fazer “o bolo crescer” para depois dividi-lo).
Em segundo lugar, temos que reconhecer o papel indispensável dos programas de renda mínima, como o Bolsa Família e o Auxílio Brasil. Tais programas não são apenas estratégias eleitoreiras, adotadas pelos mandatários para ganhar votos da população pobre. São ferramentas indispensáveis para a redução da pobreza e para o combate à fome. Não é à toa que foram adotados por gestões com posições programáticas radicalmente opostas. Num país relativamente rico, mas que ostenta uma das maiores desigualdades socioeconômicas do planeta, como o Brasil, esses programas não são facultativos – e ainda teremos que conviver com eles por muito tempo até termos uma situação social mais justa.
A volta da fome. Em 2020, lamentavelmente, o Brasil voltou a figurar no Mapa da Fome da ONU. A pandemia do coronavírus teve muito a ver com isso, mas o problema já havia começado a retornar. Segundo os relatórios das Nações Unidas, já entre 2018 e 2020, a situação de insegurança alimentar grave havia pulado de 1,7% para 3,5% da população, passando para 7,3% (15,4 milhões de brasileiros) 2019-2020. Um levantamento da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Pensann), feito em parceria com seis entidades e ONGs, publicado em 2022, estimou que 33,1 milhões de brasileiros enfrenta- vam uma situação de insegurança alimentar grave (15,5% da população).
Este retorno da fome está em grande parte associado à crise econômica brasi- leira na década passada e ao aumento do desemprego – agravadíssimos pela pandemia. Além disso, reflete as desigualdades já bem conhecidas da sociedade brasileira: evidentemente é muito maior entre os mais pobres, afeta mais as populações pretas e pardas do que as brancas, é mais grave nas regiões Norte e Nordeste. Um dado significativo é que a insegurança alimentar é maior na zona rural (onde há 35,5% dos domicílios com in- segurança alimentar grave ou moderada) do que nas cidades (31,8% dos domicílios com insegurança alimentar grave ou moderada). Trata-se de populações que vivem junto à terra, mas não conseguem obter dela o alimento necessário – seja por razões sociais, como a posse da terra ou de recursos mínimos para cultivá-la, seja por razões ambientais, como períodos de seca, solos pouco produtivos etc.
A responsabilidade do Estado. A pandemia mostrou, para todos os países, que o Estado é fundamental no enfrentamento de crises e situações extremas. Ainda que vários arranjos institucionais sejam possíveis, ficou claro que, na res- posta a esses contextos, a possibilidade de uma total ausência do Estado é uma ilusão. Nesse sentido, é importante lembrar que o Estado subsidiário, proposto pela Doutrina Social da Igreja, é um Estado que apoia as iniciativas que vêm da sociedade para a resolução dos problemas, mas não um Estado que se omite diante dos problemas da sociedade.
Observando o que já deu certo e o que já deu errado tanto no Brasil quanto em outros países, a responsabilidade estatal no combate à fome implica em pelo menos quatro pontos:
1) A consolidação de programas eficientes de renda mínima, que garantam que mesmo as populações mais pobres tenham condições de adquirir o necessário para se alimentar.
2) No campo, programas de desenvolvimento para a agricultura familiar, focados naquelas áreas em que as famílias não conseguem obter alimento suficientes.
3) Na gestão pública, manter e até aumentar, quando necessário, os mecanismos de proteção social e apoio aos mais pobres, atuando com responsabilidade fiscal, pois está visto que os desequilíbrios das contas públicas (reais ou fabricados) acabam prejudicando justamente os mais pobres.
4) Na economia, estimular um desenvolvimento humano integral, realmente a serviço da qualidade de vida da população e não apenas do lucro privado.
Além dessas grandes linhas de ação, existem muitas medidas pontuais, que no conjunto podem trazer ganhos significativos para a qualidade de vida da população. Por exemplo: manter programas de combate à desnutrição infantil nos primeiros anos de vida; garantir programas de alimentação escolar de qualidade; manter os estoques reguladores de alimentos, que garantem o abastecimento e os preços nas entressafras; facilitar a comercialização da produção agrícola, reduzindo a intermediação e permitindo a redução de preços; apoiar programas educativos e ações da coletividade para enfrentar a desnutrição.
A contribuição de cada um. Sem minimizar a importância das políticas públicas, existe também uma responsabilidade de cada um de nós diante do problema da fome. A Igreja tem uma larga tradição de ações sociais nessa perspectiva. Quando bem orientadas, representam não apenas um auxílio emergencial para os que estão em situação mais vulnerável, mas também um importante instrumento de promoção humana.
Neste período de Quaresma, a Campanha da Fraternidade nos convida a uma conversão pessoal, nos comprometendo sempre mais tanto em ações individuais quanto em projetos sociais que minimizem a fome de nossos irmãos, e a um empenho coletivo, que crie espaços de acolhida e apoio em nossas comunidades.
ACESSE A ÍNTEGRA DO CADERNO FÉ E CIDADANIA