Algumas graves violações da dignidade humana

A seguir, trechos do elenco – que não tem a pretensão de ser exaustivo – de graves violações à dignidade humana mencionadas na declaração Dignitas infinita (DI), do Dicastério para a Doutrina da Fé

Artes: Sergio Ricciuto Conte

O drama da pobreza (DI 36-37). Um dos fenômenos que contribuem consideravelmente para negar a dignidade de tantos seres humanos é a pobreza extrema, ligada à desigual distribuição da riqueza. Uma das maiores injustiças do mundo contemporâneo consiste propriamente nisto: que são relativamente poucos aqueles que possuem muito e muitos aqueles que não possuem quase nada. É a injustiça da má distribuição dos bens e dos serviços destinados originariamente a todos […] Continua o escândalo de desigualdades clamorosas, em que a dignidade dos pobres é duplamente negada, seja pela falta de recursos à disposição para satisfazer as suas necessidades primárias, seja pela indiferença com que são tratados por aqueles que vivem a seu lado […] Aumentou a riqueza, mas sem equidade, e assim o que acontece é que nascem novas pobrezas […] A pobreza se difunde de muitos modos, como na obsessão por reduzir os custos do trabalho, sem dar-se conta das graves consequências que isso provoca, porque o desemprego que se produz tem como efeito direto o alargar-se dos confins da pobreza. Entre esses efeitos destrutivos do império do dinheiro, deve-se reconhecer que não existe pior pobreza do que aquela que priva do trabalho e da dignidade do trabalho. Se alguns nasceram em um país ou em uma família em que se tem menos possibilidade de desenvolvimento, é necessário reconhecer que isto contrasta com a sua dignidade, que é exatamente a mesma daqueles que nasceram em uma família ou em um país rico. Todos somos responsáveis, ainda que em diversos graus, por esta evidente iniquidade.

Artes: Sergio Ricciuto Conte

A guerra (DI 38-39). Outra tragédia que nega a dignidade humana é o prolongar-se da guerra […] Vão se multiplicando dolorosamente em muitas regiões do mundo, de modo a assumir as feições daquela que se poderia chamar uma terceira guerra mundial em pedaços […] Ainda que reafirmando o direito inalienável à legítima defesa, como também a responsabilidade de proteger aqueles cuja existência é ameaçada, devemos admitir que a guerra é sempre uma derrota da humanidade […] Diante dessa realidade, hoje é muito difícil sustentar os critérios racionais maturados em outros séculos para falar de uma possível “guerra justa” […] Já que a humanidade recai frequentemente nos mesmos erros do passado; para construir a paz, é necessário sair da lógica da legitimidade da guerra.

Artes: Sergio Ricciuto Conte

O sofrimento dos migrantes (DI 40). Os migrantes estão entre as primeiras vítimas das múltiplas formas de pobreza. Não só a sua dignidade é negada nos seus países, mas a sua própria vida é colocada em risco porque não têm mais os meios para formar uma família, para trabalhar ou para nutrir-se […] É, portanto, sempre urgente recordar que cada migrante é uma pessoa humana que, como tal, possui direitos fundamentais inalienáveis que devem ser respeitados por todos em todas as situações. O seu acolhimento é um modo importante e significativo de defender a inalienável dignidade de toda pessoa humana para além da origem, da cor ou da religião.

Artes: Sergio Ricciuto Conte

O tráfico de pessoas (DI 41-42). O tráfico de pessoas humanas deve também ser contado como violação grave da dignidade humana […] O tráfico de pessoas é uma atividade indigna, uma vergonha para as nossas sociedades que se dizem civilizadas! […] Por tais motivos, a Igreja e a humanidade não devem renunciar a lutar contra fenômenos como comércio de órgãos e tecidos humanos, exploração sexual de crianças, trabalho escravizado, incluída a prostituição, tráfico de drogas e de armas, terrorismo e crime internacional organizado. É tão grande a dimensão dessas situações e o número de vidas inocentes envolvidas, que devemos evitar qualquer tentação de cair em um nominalismo declamatório com efeito tranquilizante sobre as consciências. Devemos cuidar para que as nossas instituições sejam realmente eficazes na luta contra todos esses flagelos.

Artes: Sergio Ricciuto Conte

Abusos sexuais (DI 43). A profunda dignidade inerente ao ser humano na sua inteireza de alma e corpo permite também compreender por que todo abuso sexual deixa profundas cicatrizes no coração daquele que o sofre: de fato, ele se reconhece ferido na sua dignidade humana […] Daqui brota o empenho que a Igreja não cessa de exercitar para colocar fim a todo tipo de abuso, iniciando do seu interior.

As violências contra as mulheres (DI 44-46). As violências contra as mulheres são um escândalo global, que é sempre mais reconhecido. Se nas palavras se reconhece a igual dignidade da mulher, em alguns países as desigualdades entre mulheres e homens são gravíssimas; também nos países mais desenvolvidos e democráticos, a realidade social concreta testemunha o fato de que frequentemente não se reconhece às mulheres a mesma dignidade dos homens. O Papa Francisco evidencia este fato quando afirma que “a organização das sociedades em todo o mundo está ainda longe de refletir com clareza que as mulheres têm exatamente a mesma dignidade e os idênticos direitos dos homens. Com palavras se afirmam certas coisas, mas as decisões e a realidade gritam outra mensagem. É um fato que ‘são duplamente pobres as mulheres que sofrem situações de exclusão, maus tratos e violência, porque muitas vezes se encontram com menores possibilidades de defender os seus direitos’” […] Muito ainda resta por fazer para que o ser mulher e mãe não comporte uma discriminação. É urgente obter em toda parte a efetiva igualdade dos direitos da pessoa e, assim, a paridade de salário em relação à paridade de trabalho, tutela da trabalhadora-mãe, justas progressões na carreira, igualdade entre os cônjuges no direito de família, o reconhecimento de tudo quanto é ligado aos direitos e aos deveres do cidadão em um regime democrático […] É hora de condenar com vigor, dando vida a apropriados instrumentos legislativos de defesa, as formas de violência sexual que, não raro, têm por objeto as mulheres. Em nome do respeito à pessoa, não podemos não denunciar a difusa cultura hedonista e mercantil que promove a sistemática exploração da sexualidade, induzindo inclusive jovens em tenra idade a cair nos circuitos da corrupção e a fazerem do seu corpo uma mercadoria […] Neste horizonte de violência contra as mulheres, jamais se condenará o suficientemente o fenômeno do feminicídio.

Aborto (DI 47) A dignidade de cada ser humano tem um caráter intrínseco e vale desde o momento da sua concepção até a sua morte natural. A afirmação de uma tal dignidade é o pressuposto irrenunciável para a tutela de uma existência pessoal e social, como também a condição necessária para que a fraternidade e a amizade social possam realizar-se entre todos os povos da terra. Sobre a base deste valor intocável da vida humana, o magistério eclesial sempre se pronunciou contra o aborto […] Mas hoje, na consciência de muitos, a percepção da sua gravidade foi-se progressivamente obscurecendo. A aceitação do aborto na mentalidade, no costume e na própria lei é sinal eloquente de uma perigosíssima crise do senso moral, que se torna sempre mais incapaz de distinguir entre o bem e o mal, mesmo quando está em jogo o direito fundamental à vida […] As crianças nascituras são, assim, os mais indefesos e inocentes de todos, aos quais hoje se quer negar a dignidade humana para poder fazer deles o que se quer, tirando deles a vida e promovendo legislações de modo que ninguém o possa impedir. Deve-se, portanto, afirmar com toda força e clareza, também no nosso tempo, que esta defesa da vida nascente é intimamente ligada à defesa de qualquer direito humano. Supõe a convicção de que um ser humano é sempre sagrado e inviolável, em qualquer situação e em toda fase de seu desenvolvimento. É um fim em si mesmo e jamais um meio para resolver outras dificuldades. Se esta convicção cai, não restam sólidos e permanentes fundamentos para a defesa dos direitos humanos, que seriam sempre sujeitos às conveniências contingentes dos poderosos de ocasião.

Maternidade sub-rogada (DI 48-50). Além disso, a Igreja toma posição contra a prática da maternidade sub-rogada [gestação por substituição], por meio da qual a criança, imensamente digna, torna-se mero objeto […] Esta prática se funda sobre a exploração de uma situação de necessidade material da mãe. Uma criança é sempre um dom e nunca objeto de um contrato […] A prática da maternidade sub-rogada viola, antes de tudo, a dignidade da criança […] que tem o direito de ter uma origem plenamente humana e não conduzida artificialmente, e de receber o dom de uma vida que manifeste, ao mesmo tempo, a dignidade de quem a doa e de quem a recebe […] Viola, ao mesmo tempo, a dignidade da mulher que […] se separa do filho que nela cresce e se torna um simples meio, sujeito ao lucro ou ao desejo arbitrário de outrem.

Artes: Sergio Ricciuto Conte

Eutanásia e suicídio assistido (DI 51-52). Certamente, a dignidade do doente em condições críticas ou terminais requer esforços adequados e necessários para aliviar o seu sofrimento mediante os oportunos cuidados paliativos, evitando toda obsessão terapêutica ou intervenções desproporcionais […] Mas tal esforço é totalmente diverso, distinto, antes contrário à decisão de eliminar a própria vida ou a vida de outrem sob o peso do sofrimento. A vida humana, mesmo em uma condição de dor, é portadora de uma dignidade que deve ser sempre respeitada, que não pode ser perdida e cujo respeito permanece incondicionado.

Artes: Sergio Ricciuto Conte

O descarte das pessoas com deficiência (DI 53-54). Um critério para verificar a real atenção à dignidade de cada indivíduo é, obviamente, a assistência fornecida aos mais desvalidos. O nosso tempo, infelizmente, não se distingue muito por tal cuidado: na verdade, vai-se impondo uma cultura do descarte. Para contrastar tal tendência, é merecedora de especial atenção e solicitude a condição daqueles que se encontram em uma situação de deficit físico ou psíquico. […] Numa perspectiva mais ampla, deve-se recordar que a caridade, coração do espírito da política, é sempre um amor preferencial pelos últimos, o qual está por detrás de toda ação realizada em favor deles. […] Cuidar da fragilidade quer dizer força e ternura, quer dizer luta e fecundidade em meio a um modelo funcionalista e privatista, que conduz inexoravelmente à cultura do descarte.

Teoria de gênero (gender) (DI 55- 59). A Igreja deseja, em primeiro lugar, reafirmar que cada pessoa, independentemente da própria orientação sexual, deve ser respeitada na sua dignidade e acolhida com respeito, cuidando de evitar toda marca de injusta discriminação e particularmente toda forma de agressão e violência. Por esta razão, denuncia-se como contrário à dignidade humana o fato de que em alguns lugares não poucas pessoas são encarceradas, torturadas e até mesmo privadas da vida unicamente pela sua orientação sexual. Ao mesmo tempo, a Igreja evidencia os intensos pontos críticos da teoria de gênero (gender) […] Tal ideologia propõe uma sociedade sem diferenças de sexo e esvazia a base antropológica da família. É inaceitável que algumas ideologias deste tipo, que pretendem responder a certas aspirações às vezes compreensíveis, tentem impor-se como um pensamento único que determine a educação das crianças. Não se deve ignorar que o sexo biológico (sex) e o papel sociocultural do sexo (gender) podem-se distinguir, mas não se separar […] Cada pessoa humana, somente quando pode reconhecer e aceitar esta diferença na reciprocidade, torna-se capaz de descobrir plenamente a si mesma, a própria dignidade e a própria identidade.

Mudança de sexo (DI 60). O corpo humano participa da dignidade da pessoa, enquanto é dotado de significados pessoais, particularmente na sua condição sexuada. […] Qualquer intervenção de mudança de sexo normalmente se arrisca a ameaçar a dignidade única que a pessoa recebeu desde o momento da concepção. Isso não significa excluir a possibilidade que uma pessoa portadora de anomalias dos genitais, já evidentes desde o nascimento ou que se manifestem sucessivamente, possa decidir-se por receber assistência médica com o fim de resolver tais anomalias. Neste caso, a intervenção não configuraria uma mudança de sexo no sentido aqui entendido.

Imagem gerada pelo programa Canva

Violência digital (DI 61-62). O progresso das tecnologias digitais, que oferecem muitas possibilidades para promover a dignidade humana, tende sempre mais à criação de um mundo em que crescem a exploração, a exclusão e a violência, que podem chegar a lesar a dignidade da pessoa humana. Pense-se como é fácil, por esses meios, colocar em perigo a boa fama de qualquer pessoa com notícias falsas e calúnias […] O ambiente digital é também um território de solidão, manipulação, exploração e violência, até o caso extremo da dark web. Os meios de comunicação digitais podem expor ao risco de dependência, de isolamento e de progressiva perda de contato com a realidade concreta, obstaculizando o desenvolvimento de relações interpessoais autênticas. […] Nessa perspectiva, se a tecnologia deve servir à dignidade humana, e não causar-lhe dano, e se ela deve promover a paz em vez da violência, então a comunidade humana deve ser proativa no enfrentar essas tendências, no respeito pela dignidade humana, e promover o bem.

Também hoje, diante de tantas violações da dignidade humana que ameaçam seriamente o futuro da humanidade, a Igreja encoraja a promoção da dignidade de cada pessoa humana, sejam quais forem as suas qualidades físicas, psíquicas, culturais, sociais e religiosas. Ela o faz com esperança, certa da força que brota do Cristo Ressuscitado, que revelou plenamente a dignidade integral de todo homem e de toda mulher. Esta certeza torna-se apelo nas palavras do Papa Francisco: ‘A cada pessoa deste mundo peço que não se esqueça desta sua dignidade, que ninguém tem direito de tirar-lhe’. (DI 66)
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