Por meio da fraternidade e da solidariedade, a amizade social é um tema recorrente na Doutrina Social da Igreja. Nem por isso é um tema tranquilo e bem compreendido. As polarizações políticas e ideológicas falam alto em nossos corações, tornando frequentemente inaudível a mensagem evangélica, em sua integralidade e radicalidade.
“Amai-vos uns aos outros como Eu vos amei” (Jo 13,34), “amai o teu próximo como a ti mesmo” (Lc 10,27): o amor ao próximo é a origem indubitável da ênfase cristã à fraternidade e à solidariedade. O problema é que essas passagens não podem ser lidas sem a referência a tantas outras que explicam quem é “o próximo”. Desnecessário é lembrar a parábola do bom samaritano (Lc 10,29-37), que orienta a reflexão do Papa Francisco na Fratelli tutti (Cap. II). Mas, talvez ainda mais desafiadora seja a passagem de Mateus (25,35-45), na qual o bom Rei amaldiçoa e envia ao fogo eterno aqueles que não deram de comer e de beber aos necessitados, não acolheram os doentes e os estrangeiros, nem visitaram os presos (referência óbvia a todos aqueles que nós consideramos errados e merecedores de condenação).
A precedência da caridade e as ideologias. Frequentemente, temos a ilusão de que a doutrina social católica é o resultado de uma teorização que, a partir de um conjunto de premissas abstratas, estabelece o que é certo e o que é errado, o que constrói e o que é contrário ao bem comum. Mas a reflexão social da Igreja, ainda que seja teológica, nascida e orientada pela fé (cf. Compêndio da Doutrina Social da Igreja, CDSI 72-75), parte da experiência concreta daqueles que vivem a caridade social. Nasce da prática do amor ao próximo, não de teorizações abstratas – a reflexão busca, na riqueza do saber teológico, as motivações e os alertas que orientam a ação (cf. CDSI 3-6).
Por isso, a coerência interna da doutrina social não vem de seus nexos ideológicos. Frequentemente, os católicos são criticados porque aparentemente adotam posturas ideologicamente diversas e até conflitantes, mas essa é uma consequência dessa primazia de um sadio pragmatismo orientado pelo amor ao próximo: aquilo que traz o bem para as pessoas deve ser abraçado, mesmo que pertença a um programa político diverso do meu. Evidentemente, esse pragmatismo deveria implicar um compromisso teórico de buscar, sempre que necessário, uma nova síntese, um novo programa social, que integre com harmonia as propostas aparentemente conflitantes. Esse, contudo, é um segundo passo que só pode ser dado a partir do reconhecimento da prioridade do amor ao próximo.
Quando esse princípio da caridade como virtude social perde sua justa posição, na base da reflexão, a doutrina católica termina por ser, inevitavelmente, instrumentalizada por uma ou outra leitura ideológica. Todos estamos sujeitos às reduções ideológicas da realidade, nenhum de nós é uma divindade com a capacidade de abarcar o real integralmente e sempre estar correto. Sem a percepção do amor, que é, antes de tudo, misericórdia de Deus para conosco e com os nossos limites, tentamos nos apoiar em concepções ideológicas e posicionamentos conceituais – os quais, ainda que corretos em muitos aspectos, nunca serão perfeitos e capazes de tornar o amor desnecessário. Afinal, como disse Bento XVI, na Deus Caritas Est, “o amor — caritas — será sempre necessário, mesmo na sociedade mais justa” (DCE 28b).
Muitas vezes, temos a ilusão de que, denunciando a ideologia de nossos oponentes, estaremos livres do perigo de sermos manipulados ideologicamente. Ledo engano. Combater a ideologia com a teoria significa entrar no próprio jogo dos ideólogos. Quando Tomé pergunta a Jesus qual é o caminho, Ele não responde apresentando percursos morais ou posições conceituais, mas um fato, a Sua própria existência: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (cf. Jo 14, 5-6). É a prática do amor, em sua integralidade e realismo, que supera as ideologias – não as considerações teóricas.
Um caminho de diálogo. Em função de nossas polarizações e da contaminação ideológica (tão inevitável no pensamento humano como o próprio pecado), o tema da amizade social, em suas várias decorrências, se tornou tão problemático no interior da Igreja. Desejamos nos justificar, convencer e até forçar os outros a pensar como nós, lemos o magistério católico de forma seletiva, buscando o que nos agrada e omitindo o que nos desagrada. Faz parte da nossa natureza humana, sempre contraditória e sujeita ao pecado.
Porém, como o Papa Francisco sabiamente alerta, nosso problema não é sermos pecadores, mas, sim, corruptos (ver O nome de Deus é misericórdia. São Paulo: Planeta, 2016). O pecador, ao pecar, se entristece e procura se emendar. Poderá ter sucesso e não voltar ao erro, poderá falhar e ter que começar tudo de novo. A misericórdia não o abandonará jamais e poderá recomeçar quantas vezes forem necessárias para se tornar virtuoso naquele aspecto. O corrupto, pelo contrário, ao pecar se compraz de seus malfeitos, alegra-se e até se orgulha dos ganhos que colheu de modo injusto. Não quer ou, arrogantemente, julga não precisar da misericórdia. Deus não deseja se afastar dele, mas ele se afasta de Deus.
De modo análogo ao corrupto, podemos nos entregar a nossas posições partidárias, só procurar os erros dos que pensam diferente de nós, convencermo-nos de que realmente não temos nada de bom a aprender com o outro, que ele realmente deve ser cancelado do debate social. Infelizmente, não é mera coincidência qualquer semelhança com o fariseu, que rezou a Deus agradecendo porque era melhor do que o publicano e, por sua presunção, não foi perdoado (Lc 18,9-14).
Quando nos colocamos nessa posição, não importa se nos imaginamos melhores por sermos de direita, centro ou esquerda, recusamos o diálogo com o diferente e acabamos por nos fechar até mesmo a Deus, que sempre é surpreendente na criatividade com que nos corrige e nos fascina. Mas, seguindo outro caminho, podemos reconhecer que uma centelha de verdade existe em todos nós, que o diálogo com o diferente sempre poderá enriquecer tanto a nós quanto ao outro.
O diálogo é o caminho da verdadeira amizade. Para sermos amigos, não precisamos concordar com o outro. Precisamos de algo ainda mais radical: querer o seu bem. Todos experimentamos, ao longo da vida, a diferença entre um debate em que queremos mostrar ao outro que estamos mais certos, até mesmo destruindo suas convicções, e um diálogo em que juntos procuramos aquela verdade que será um bem para nós dois.
O diálogo é o caminho tanto para a fraternidade e a unidade eclesial quanto para a amizade social que constrói o bem comum. Não implica desacreditarmos da Verdade que encontramos ou relativizá-la, mas em termos a segurança de saber que, quando buscamos entender e amar o outro, seremos capazes de entender essa Verdade de um modo ainda mais integral – e nos comprometer- mos cada vez mais com uma sociedade mais justa e fraterna, buscando ser “mais santos”.
Más objeções e boas perguntas. Frequentemente, encontramos mil motivos para nos recusarmos ao diálogo. São os outros que não o desejam, que apresentam sempre os mesmos argumentos, que procuram nos manipular e/ou cancelar… E, de fato, essas coisas realmente acontecem muitas vezes.
Contudo, o que se apresenta como dificuldade não pode se tornar uma objeção. Quando as dificuldades que emperram o diálogo se tornam objeções para nós, é sinal de que já perdemos a batalha mais importante: aquela pelo nosso coração. A lógica do Cristianismo não é igual à do mundo. O adversário não é alguém a ser destruído, mas alguém com quem descobrir um novo caminho de encontro. Não podemos ser ingênuos e acreditar que o encontro sempre irá ocorrer, que o outro não pode desejar e fazer o mal; mas não podemos nos furtar à tentativa de dialogar, de descobrir os pontos em comum, as dores a serem acolhidas, o futuro que, bem ou mal, poderá ser compartilhado.
As objeções são obstáculos a serem removidos em nós mesmos. Pelo contrário, as boas perguntas são um caminho a ser trilhado sempre. Uma boa pergunta, que não se apresenta como desafio agressivo, mas como convite à reflexão, pode sempre ajudar no encontro com aqueles que têm um desejo sincero de bem, mesmo que se coloquem em oposição a nós inicialmente, um passo no caminho com aqueles que poderão ser nossos companheiros de caminhada, apesar das diferenças.
Num debate sobre o papel do Estado, boas perguntas podem ser “sem assistência adequada, será que os pobres não sofrerão injustamente e muitas pessoas capacitadas deixarão de ter oportunidades?” ou “como esses programas sociais evitam o assistencialismo e o populismo?”. Quando nos posicionamos contra o aborto, em vez de condenar o outro lado, pode ser melhor perguntar sobre a diferença entre os filhos desejados e batalhados por tantos casais e aqueles indesejados e abortados, não são seres humanos tanto uns quanto outros? Ou será que a dor da mulher que aborta não seria menor se ela tivesse uma real oportunidade de ser feliz com seu filho, em vez de perdê-lo?
Boas perguntas dependem de um olhar atento ao outro, a um real desejo de entender o seu coração, conhecer o desejo de felicidade que o mobiliza, pois todos nós somos mobilizados pelo nosso desejo de felicidade. A reação do outro muitas vezes não será a que gostaríamos, porém, mãos estendidas têm muito mais chance de encontrar outras mãos estendidas do que punhos fechados.
Oportuna reflexão nestes tempos sombrios de polarização e calcificação de posições ideologicamente obtusas. Parabéns, Borba, por trazer à tona as palavras do Papa Francisco.
Precisamos muita FÉ… Necessitamos dela… Orações ajudam, mas não justificam… Acredito que, como eu, crio a minha oração para o momento atual, pois o passado não se corrige. Assim, Pelas noites adentro, converso com DEUS… E de repente ele está dentro de mim… E fala comigo. Sou eu Deus falando comigo pensando no amigo DEUS, em qualquer altar ou mesa angular, pelo mundo…A pergunta que fica: Pouca coisa a fazer… `Pois as leis e as ordens humanas foram dominadas pela força nos chamados P
Excelente e rico texto para reflexão sobre nossas atitudes, sobretudo nesse tempo quaresmal!
Obrigado
Reflexão muito salutar. Sempre bom ouvi-lo (ou lê-lo) professor Borba!