E tivemos mais um Natal sem paz na Terra

Arte: Sérgio Ricciuto Conte

“Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens de boa vontade” – o canto dos anjos ao anunciar o nascimento de Jesus permanece sem realização após 2.024 natais. É significativo que, de todos os dons que Deus dá à humanidade, os anjos tenham escolhido a paz. Ela é, de fato, a condição para tornar possível outros dons: a tranquilidade da vida, a realização plena de cada um, a liberdade, a busca da felicidade. 

Ucranianos e russos, palestinos e israelenses, dezenas de outros povos na África, na Ásia, recitarão as preces e cantarão os hinos, sentindo em cada palavra o contraste entre a beleza da aspiração e o horror da realidade. Por que, depois de dois milênios de tentar pôr em prática os Evangelhos, após tentativas notáveis de construir a paz perpétua como a Carta e a Organização das Nações Unidas, o objetivo continua um alvo que foge de nós à medida que nos aproximamos dele? 

Não é que não tenha havido progressos. Em 2025, vamos completar, se Deus quiser, 80 anos sem uma nova guerra mundial, sem novas Hiroshimas e Nagasakis. Pela primeira vez na história, o Direito Internacional colocou a guerra fora da lei. Pela Carta da ONU, ela só é admitida em duas hipóteses: a legítima defesa e uma decisão do Conselho de Segurança em caso de um país ameaçar a paz e a segurança. 

O que inspirou a criação da ONU foi a ideia de segurança coletiva. Isto é, um Estado ameaçado por outro ou lesado em seus direitos, não tomaria a lei nas próprias mãos. Em vez disso, os conflitos entre Estados seriam resolvidos não pela violência, mas por meios jurídicos: a Corte Internacional de Justiça ou negociações. Como ocorre dentro de cada país com os conflitos entre indivíduos. 

Ao mesmo tempo, edificou-se, a partir da Declaração dos Direitos Humanos, um conjunto impressionante de tratados, garantindo não só os direitos da pessoa integral (políticos, econômicos, sociais, culturais etc) e igualmente os de categorias especiais (crianças, refugiados, minorias). Durante esses 80 anos, a consciência moral da humanidade tem avançado ao longo de alguns eixos fundamentais: direitos humanos, meio ambiente, igualdade de mulheres e homens, a promoção de “todos os homens e do homem como um todo” por meio do desenvolvimento, chamado por Paulo VI de “o novo nome da paz”. 

Por que, apesar desses avanços, assistimos ao retrocesso da volta da geopolítica da guerra até no coração da Europa? A resposta tem de ser buscada não no defeito possível de instituições como a ONU, o Direito e os tratados. O problema se encontra no “abismo que é o coração da cada homem”, no egoísmo das grandes potências, que nunca aceitaram submeter-se à lei internacional, na cobiça, sonhos de grandeza e superioridade. 

Está fora da moda falar na inclinação para o mal, do pecado original. Esqueceu-se do que escreveu Kant “da madeira torta de que o homem é feito nada se pode realizar de perfeito”. As leis e instituições mais perfeitas de nada valem se os homens não estiverem à altura delas. 

O que nos leva de volta à mensagem cristã: no coração é que nascem os desígnios perversos causadores da violência e da guerra. O caminho da paz passa pela conversão de cada um e de todos. É ilusão pensar que as leis garantam a paz sem que precisemos mudar de comportamento. 

Que a graça que nos veio com Aquele que nasceu no Natal converta os poderosos para dar ao mundo a paz, a fim de que se cumpra a promessa: “Bem-aventurados os que promovem a paz, pois serão chamados filhos de Deus”.

Este Caderno Fé e Cidadania foi escrito com o apoio dos autores associados ao Instituto Jacques Maritain do Brasil, que tem por finalidade o estudo, aprofundamento e difusão do pensamento de Jacques Maritain, o filosofo cristão do século XX, grande proponente do Humanismo Integral: “o Homem todo e todos os homens”. Foi criado em 1992 por André Franco Montoro e Dom Candido Padim, OSB, estando associado ao Instituto Internacional Jacques Maritain, de Roma. Reúne intelectuais inspirados nos princípios do Humanismo Integral e é um convite aos que procuram conhecer melhor a reflexão cristã sobre as grandes questões que desafiam o mundo de hoje. Busca a formação de novos quadros em uma experiência política, espiritual e cultural. Contato: maritain@maritain.org.br. 

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