Entre a gratuidade e a política

A caridade traz em si uma inevitável dimensão política – não como posição partidária, mas sim como esforço de construção do bem comum. O importante, para os cristãos, é entender que a caridade deve iluminar a política – e não o partidarismo ideológico contaminar a caridade

Vatican Media

Querer compartilhar com o outro nossas alegrias e solidarizar-se com seus sofrimentos faz parte da natureza humana – mesmo que de forma contraditória, pois nós, pecadores, muitas vezes nos deixamos levar pelo mal e não pelo bem. A solidariedade nos realiza. As vitórias solitárias deixam um sabor de vazio, a impressão de que algo ainda falta… Daí o aparente paradoxo de, em uma sociedade individualista como a nossa, vicejarem tantas experiências de voluntariado e solidariedade.

Cristo nos mostra que somos frutos de um amor que se doa incondicionalmente e, por isso, a lei suprema da nossa vida é compartilhar nosso ser, nos doarmos ao outro. Esse é o sentido maior daquilo que chamamos caridade. Por isso, se todos os seres humanos sentem o impulso à solidariedade e à fraternidade, os cristãos procuram praticar a caridade, buscando aprender a viver como Cristo e em comunhão com Ele.

Gratuidade. Existe um elemento de gratuidade em todo verdadeiro gesto de caridade: é algo feito para o bem do outro, em função de suas necessidades e aspirações, sem a imposição de um projeto político-ideológico ou de uma visão preconcebida de como o outro deve ser e responder.

Isso não elimina o dever de ajudar a correção de rota, quando o outro está seguindo um caminho que não o ajuda. Mas também implica acolhê-lo como ele é, com as necessidades que apresenta, sem tentar impor um modelo de “bem”, de “realização” e de “felicidade” que não está claro para ele. Muitas vezes, aqueles que vêm para promover e apoiar acabam por praticar verdadeiras violências contra os assistidos por não respeitarem sua situação concreta e quererem lhes impor um projeto social ou moral que lhes escapa – ou que até está em conflito com seus valores originais.

A verdadeira caridade implica sempre uma descoberta tanto de si mesmo quanto do outro. Descobrimos que nós mesmos não podemos nos realizar integralmente sem o amor que nos constitui – amor que, paradoxalmente, nos é dado à medida que nós mesmos nos doamos. Percebemos que a recompensa que verdadeiramente buscamos não vem da gratidão ou da adesão que o outro manifesta, mas de Alguém muito maior. E, finalmente, descobrimos que o outro – assim como nós mesmos – é sempre um mistério insondável, que carrega em si um desejo de amor e de sentido que só pode realmente ser respondido por esse Alguém maior.

Política. A humanidade, e a Igreja como parte dela, tem aprendido, ao longo da história, que a promoção humana é muito mais eficiente se enfrenta as causas estruturais das situações de pobreza e sofrimento das pessoas. Mas, quando adentramos esse terreno, a prática da caridade ganha uma inevitável dimensão política. Tal relação não pode ser evitada – as tentativas de uma caridade “sem política” acabam por servir à manipulação ideológico-partidária tanto dos supostos amigos (que manipulam os católicos bem-intencionados visando a seus projetos individuais e até contrários ao bem comum) quanto dos adversários (que usam a falta de uma compreensão política da realidade para difamar a atuação dos católicos e roubar-lhes a credibilidade). Contudo, deve haver sempre um discernimento claro, para que partidarismos e ideologias não obscureçam a caridade, mas – pelo contrário – seja a caridade a iluminar a política.

A análise sociopolítica nos mostra as causas estruturais dos problemas e os programas políticos nos mostram as respostas possíveis em função destas estruturas. Por exemplo, no caso da população em situação de rua, a análise nos ajudará a entender os efeitos da epidemia de COVID-19, o impacto do desemprego e da desestruturação familiar, o peso das drogadição… Programas políticos, se analisados comparativamente e a partir de dados objetivos, nos mostram o maior ou menor sucesso de ações assistencialistas, qual a necessidade e quais os perigos de uma abordagem repressiva, focada na segurança pública etc…

Contudo, é a caridade, a vivência do amor gratuito, que oferece o justo discernimento para, conhecendo as causas estruturais e as alternativas, saber qual caminho escolher – porque, em qualquer situação, a melhor opção é sempre aquela na qual a experiência de ser amado e a resposta às necessidades materiais andam juntas.

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