Fratelli tutti (FT) é uma encíclica social, voltada aos problemas socioeconômicos do mundo atual, regido pela economia de mercado. Nesse sentido, chama a atenção para a incapacidade de os mercados, por si só, se autorregularem, já que a sua lógica interna é competitiva e individualista; daí, a necessidade de o mercado ser regulado pela sociedade e pelo Estado para a construção do bem comum.
PARA SE TORNAR POSSÍVEL O DESENVOLVIMENTO DE UMA COMUNIDADE MUNDIAL CAPAZ DE REALIZAR A FRATERNIDADE A PARTIR DE POVOS E NAÇÕES QUE VIVAM A AMIZADE SOCIAL, É NECESSÁRIA A POLÍTICA MELHOR, A POLÍTICA COLOCADA A SERVIÇO DO VERDADEIRO BEM COMUM
(FT, 154)
Ao cristão, não deveria interessar situar Francisco mais à direita ou mais à esquerda; mas, sim, compreender e responder o convite à conversão feito por ele. Apesar disso, muitos têm feito uma leitura ideológica da encíclica. A esquerda quer usar o Papa como arauto de suas ideias. A direita quer desqualificar sua mensagem, tachando-a de ideológica, para não se deixar interpelar por ela.
Para quem está habituado a leituras esquemáticas e partidárias, a encíclica pode parecer ambígua: defende e condena a mesma realidade em trechos diferentes. Não se trata de ambiguidade. Seguindo a tradição da Doutrina Social da Igreja, o Papa sempre procura mostrar o que há de bom e o que deve ser evitado em cada aspecto da realidade. Por exemplo, lembrando São João Paulo II e São Paulo VI, recorda que a propriedade privada é um direito da pessoa, mas sobre o qual pesa uma responsabilidade social – não me é lícito ter mais do que o necessário quando o essencial falta ao meu irmão (FT, 120).
FAÇO MINHAS E VOLTO A PROPOR A TODOS ALGUMAS PALAVRAS DE SÃO JOÃO PAULO II […]: “DEUS DEU A TERRA A TODO GÊNERO HUMANO, PARA QUE ELA SUSTENTE TODOS OS SEUS MEMBROS, SEM EXCLUIR NEM PRIVILEGIAR NINGUÉM
(FT, 120)
Com essa postura, Francisco trata a questão do liberalismo e do neoliberalismo (FT, 163-169). Mostra a incapacidade de os mercados se autorregularem para construir o bem comum. A lógica interna do mercado é competitiva e individualista, e mesmo as parcerias são criadas em função do interesse particular de cada sócio. É uma dinâmica inerente ao sistema, e o Papa não o critica por isso – inclusive reconhece e valoriza a ação dos empresários (FT, 123). Mas pede que reconheçamos que essa lógica não pode construir, por si só, o bem comum. O mercado precisa ser regulado pela sociedade e o Estado – e este sim deve ter uma lógica voltada ao bem comum. Mesmo nos países mais liberais do mundo, existem leis contra monopólios e abusos do poder econômico, pois se constata – na prática – o perigo de que interesses privados de poderosos se sobreponham ao bem comum.
A lógica do mercado pode aumentar a inclusão de alguns mais preparados para as exigências da economia; mas exclui outros, fragilizados por uma condição pessoal (doença, velhice) ou por carências históricas (pobreza, discriminação etc.). Ao longo da História, a sociedade ocidental conseguiu se desenvolver e ganhar estabilidade política e social justamente porque os Estados assumiram sua responsabilidade na promoção humana de suas populações – o que não se confunde com assistencialismo (FT, 107-110). A crise a que estamos assistindo atualmente, no Chile, o país sul-americano que mais avançou numa perspectiva neoliberal, por exemplo, mostra a necessidade de ações governamentais voltadas à construção do bem comum e apoio às pessoas em suas necessidades.
Francisco não ignora os problemas do Estado, mas considera que eles devem ser superados com uma “política melhor” e não com uma autonomia absoluta do mercado: “Embora se deva rejeitar o mau uso do poder, a corrupção, a falta de respeito das leis e a ineficiência, não se pode justificar uma economia sem política, porque seria incapaz de promover outra lógica para governar os vários aspectos da crise atual” (FT, 177).
A FRAGILIDADE DOS SISTEMAS MUNDIAIS PERANTE A PANDEMIA EVIDENCIOU QUE NEM TUDO SE RESOLVE COM A LIBERDADE DE MERCADO E QUE, ALÉM DE REABILITAR UMA POLÍTICA SAUDÁVEL, QUE NÃO ESTEJA SUJEITA AOS DITAMES DAS FINANÇAS, DEVEMOS VOLTAR A PÔR A DIGNIDADE HUMANA NO CENTRO, E SOBRE ESTE PILAR DEVEM SER CONSTRUÍDAS AS ESTRUTURAS SOCIAIS ALTERNATIVAS DE QUE PRECISAMOS
(FT, 168)
Muitos sentiram falta, na encíclica, das críticas ao marxismo, comuns nas encíclicas sociais de São João Paulo II. Contudo, na própria Centesimus annus, ele comentava que a queda do comunismo trazia uma nova realidade e denunciava os limites da economia de mercado aparentemente vencedora. Na Caritas in veritate, de Bento XVI, o tema do comunismo já aparece muito pouco.
Na Fratelli tutti, a posição contraposta à do neoliberalismo, que também deve ser criticada, é a do populismo (FT, 156-162). Francisco reconhece o valor dos líderes populares (FT, 169), mas considera que o populismo pode ser apenas “habilidade de alguém para atrair consensos, a fim de instrumentalizar politicamente a cultura do povo, sob qualquer sinal ideológico, ao serviço do seu projeto pessoal e da sua permanência no poder” (FT, 159).
Os populismos nacionalistas veem o povo como uma realidade fechada, que precisa estar o tempotodo se defendendo de um perigo exterior – o estrangeiro, uma ideologia espúria etc. (FT, 11, 86, 141, 160).
Em oposição ao populismo, uma política melhor busca a verdadeira promoção humana e não o assistencialismo. “Esta é a melhor ajuda para um pobre, o melhor caminho para uma existência digna. Por isso, insisto que ajudar os pobres com o dinheiro deve sempre ser um remédio provisório para enfrentar emergências. O verdadeiro objetivo deveria ser sempre consentir- -lhes uma vida digna por meio do trabalho” (FT, 162).
Por outro lado, “é necessário pensar a participação social, política e econômica segundo modalidades tais que incluam os movimentos populares e animem as estruturas de governos locais, nacionais e internacionais com aquela torrente de energia moral que nasce da integração dos excluídos na construção do destino comum” (FT, 169).
A CONSISTÊNCIA DE TUDO ISSO PODERÁ SER BEM POUCA, SE PERDERMOS A CAPACIDADE DE RECONHECER A NECESSIDADE DE UMA MUDANÇA NOS CORAÇÕES HUMANOS, NOS HÁBITOS E ESTILOS DE VIDA […] A QUESTÃO É A FRAGILIDADE HUMANA, A TENDÊNCIA HUMANA CONSTANTE PARA O EGOÍSMO, QUE FAZ PARTE DAQUILO QUE A TRADIÇÃO CRISTÃ CHAMA “CONCUPISCÊNCIA” […] MAS, É POSSÍVEL DOMINÁ-LA COM A AJUDA DE DEUS
(FT, 166)
É lícito e justo que cada cristão procure encontrar os programas políticos que considera mais adequados para a construção do bem comum (Compêndio da Doutrina Social da Igreja, CDSI, 574). Contudo, “todos os compromissos decorrentes da Doutrina Social da Igreja derivam da caridade que é – como ensinou Jesus – a síntese de toda a Lei (cf. Mt 22,36-40)” (FT, 181). E com isso não podemos barganhar.
RECONHECER TODO O SER HUMANO COMO UM IRMÃO OU UMA IRMÃ E PROCURAR UMA AMIZADE SOCIAL QUE INTEGRE A TODOS NÃO SÃO MERAS UTOPIAS. EXIGEM A DECISÃO E A CAPACIDADE DE ENCONTRAR OS PERCURSOS EFICAZES, QUE ASSEGUREM A SUA REAL POSSIBILIDADE […] TRATA-SE DE AVANÇAR PARA UMA ORDEM SOCIAL E POLÍTICA, CUJA ALMA SEJA A CARIDADE SOCIAL. CONVIDO UMA VEZ MAIS A REVALORIZAR A POLÍTICA, QUE […] É UMA DAS FORMAS MAIS PRECIOSAS DE CARIDADE, PORQUE BUSCA O BEM COMUM
(FT, 180)