A primeira exortação apostólica de Leão XIV repropõe a centralidade dos pobres na doutrina cristã, destacando a identificação com Jesus Cristo por meio do amor e do cuidado pelos mais necessitados. A Igreja tem a missão de ser solidária, crítica e ativa na promoção da dignidade dos excluídos, não por ativismo social, mas por sua própria natureza religiosa.

O Papa Leão XIV, filho de Santo Agostinho, certamente se lembra sempre do que ensinou o grande teólogo ao comentar o capítulo 25 de São Mateus, que ele cita quase trezentas vezes em sua obra: “O Cristo está necessitado quando o pobre está necessitado” (Eget Christus quando eget pauper). Nenhuma palavra, nenhum gesto deve haver na Igreja que não tenha como escopo a busca de identificação com Jesus Cristo. Nada deveria nos desviar desse caminho. Isso quer dizer que na atenção que dermos à imensidão de pobres que encontramos na vida, está um caminho seguro para a nossa salvação. Quando os Evangelhos quiseram condensar a doutrina cristã em poucas palavras, colocaram os pobres na base de todo o dinamismo das Bem-Aventuranças (cf. Mt 5,3; Lc 6,20).
Padre José Comblin, teólogo e missionário belga que trabalhou décadas no Brasil, costumava dizer que é diante do pobre que nossa liturgia, teologia, catequese, direito… começam a tropeçar. O engajamento pela evangelização dos pobres (cf. 7,19-23) é a pedra de toque para sabermos se somos realmente – ou não – homens e mulheres do Evangelho.
Quando a mística cristã quis nos propor a imitação radical da pobreza de Nosso Senhor, usou a imagem do Crucificado desnudo sobre a cruz. O cristão segue nu o Cristo nu (Nudus nudum Christus sequi). Lá estava o mais pobre dos seres humanos, para vencer as causas da nossa pobreza (material, social, moral, cultural). Mas também para dotar a sua comunidade de um constante espírito de pobreza evangélica.
No coração da Igreja. Por isso, é motivo de imensa alegria ver o Santo Padre Leão XIV desde este início de pontificado, como sucessor do chefe dos Apóstolos, dar-nos este precioso texto: uma exortação para não só “não esquecermos dos pobres” (Gl 2,10), mas fazer desta reflexão uma verdadeira e robusta ação eclesial. Na qualidade de Pastor supremo, direciona-nos para o que há de mais importante nos tempos atuais: o cuidado amoroso com os mais fracos, míseros e sofredores. O Papa está falando de uma realidade que ele conhece de perto, em todas as latitudes, provavelmente mais até que seu predecessor, o Papa Francisco, com o qual mostra entusiasmada sintonia evangélica.
De todos os seres do planeta, sobre os quais pesa tão vasta responsabilidade moral, o que foi chamado para ser o Bom Pastor universal torna-se o arauto da contemplação do amor de Jesus Cristo como fundamento para nossa participação na sua obra de libertação.
Leão XIV deixa claro que “o coração da Igreja, por sua própria natureza, é solidário com os pobres, excluídos e marginalizados, com todos aqueles que são considerados descartáveis pela sociedade”. Por isso, ele chama nossa atenção para a natureza quenótica da Igreja (cf. Fl 2,7), uma Igreja despojada, esvaziada, libertada de tudo o que possa contribuir para desfigurar a face do Salvador. Por isso, ela deve se configurar, comunitariamente, com o escravo, o último dos seres humanos.
Em um olhar pelo mundo, da Ucrânica à Faixa de Gaza, mas também mais perto de nós, encontramos sociedades polarizadas, disseminação de ódio, uma desconfiança generalizada, a ponto de aumentar sensivelmente, como jamais se viu, a produção, armazenamento, venda e contrabando de armas. Até os alimentos e a água têm sido usados como ameaça e prática de extermínio, verdadeira manifestação de irracionalidade.
Nesse âmbito, a Igreja tem sido corajosa em denunciar a ganância dos poderosos, oferecer-se para promover diálogo e negociações, jamais desperdiçando as oportunidades para sua ação em prol da justiça e da paz. O Santo Padre historia didaticamente a longa tradição da Igreja no serviço pastoral aos pobres, desde o Novo Testamento, passando pela Patrística, as inúmeras iniciativas desde a Idade Média até à contemporaneidade, com nomes e instituições que nos edificam, diante dos quais nos sentimos muito pequenos, sobretudo porque hoje teríamos mais recursos para a eficiência no combate à pobreza material.
Também caminho pedagógico. A Santa Sé publica com regularidade os relatórios da imensa atividade caritativa da Igreja (escolas em todos os níveis, hospitais, distribuição de alimentos e vestuário, abrigos, pesquisas para a proteção e melhoria da vida de populações indígenas, trabalhadores rurais e urbanos, fomento de postos de trabalho, imigrantes, combate ao desperdício, obras de prevenção, amparo nas calamidades, direito a crédito não abusivo etc. sem jamais esquecer do cuidado espiritual com os pobres). Os católicos que puderem deveriam até ser mais generosos sobretudo nas ofertas para o “Óbulo de São Pedro”, as coletas realizadas no final de todos os meses de junho em todas as Paróquias para a provisão de recursos que o Santo Padre destina aos pobres, católicos ou não, de todas as partes do mundo. E deveríamos nos conscientizar mais da necessidade de uma cultura de doação para atender às necessidades dos que vivem marginalizados do usufruto dos bens que a humanidade produz.
A Igreja, contudo, não é uma corporação filantrópica entre tantas. Todas essas iniciativas, ao lado de realizações de comprovada eficácia, e de transparente prestação de contas, são também pedagógicas para aperfeiçoar a vida humana. Não é humano querer apenas banir os pobres ou deixá-los longe da vista. O Papa recorda que a religião não deve ser confinada à vida privada. E nos deixa uma reflexão decisiva, em que vemos a voz do atual Papa somando e reverberando a voz profética de seus antecessores: “Qualquer comunidade da Igreja que pretender subsistir tranquila sem se ocupar criativamente nem cooperar de forma eficaz para que os pobres vivam com dignidade e haja a inclusão de todos, correria também o risco de sua dissolução, mesmo que fale de temas sociais e critique os governos. Facilmente acabará submersa pelo mundanismo espiritual, dissimulado em práticas religiosas, reuniões infecundas ou discursos vazios”.
Amar e servir aos pobres, com os quais o Cristo se identificou, e nos tornarmos uma Igreja serva e pobre, é uma solicitude religiosa privilegiada e prioritária.