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O amor aos pobres, a partir do amor de Deus

Selecionamos alguns trechos da Exortação Apostólica Dilexi te (DT), do Papa Leão XIV, que nos ajudam a entrar no espírito da obra.

Luciney Martins/O SÃO PAULO

“Eu te amei” (Ap 3,9), diz o Senhor a uma comunidade cristã que, ao contrário de outras, não tinha qualquer relevância ou recurso e estava exposta à violência e ao desprezo: “Tens pouca força, mas […] farei que […] venham prostrar-se a teus pés” (Ap 3,8-9). Este texto recorda as palavras do cântico de Maria: “Derrubou os poderosos de seus tronos e exaltou os humildes. Aos famintos, encheu de bens e aos ricos, despediu de mãos vazias” (Lc 1,52-53).

A declaração de amor do Apocalipse remete ao mistério insondável que foi aprofundado pelo Papa Francisco na Encíclica Dilexit nos (DN). Nela, admiramos o modo como Jesus se identifica “com os últimos da sociedade” e como, por meio do seu amor doado até ao fim, mostra a dignidade de cada ser humano, sobretudo quando é “mais fraco, mísero e sofredor” (DN 170). Contemplar o amor de Cristo “ajuda-nos a prestar mais atenção ao sofrimento e às necessidades dos outros, e torna-nos suficientemente fortes para participar na sua obra de libertação, como instrumentos de difusão do seu amor” (DN 171).

[…] “Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim mesmo o fizestes” (Mt 25,40). Não estamos no horizonte da beneficência, mas no da Revelação: o contato com quem não tem poder nem grandeza é um modo fundamental de encontro com o Senhor da história. Nos pobres, Ele tem algo a dizer-nos […] A condição dos pobres representa um grito que, na história, interpela constantemente a nossa vida, as nossas sociedades, os sistemas políticos e econômicos e, sobretudo, a Igreja. No rosto ferido dos pobres, encontramos impresso o sofrimento dos inocentes e, portanto, o próprio sofrimento de Cristo […]

Deus é amor misericordioso e o seu projeto de amor é primeiramente o seu descer e vir estar entre nós para nos libertar da escravidão, dos medos, do pecado e do poder da morte. Ele dirigiu-se às suas criaturas com olhar misericordioso, preocupando-se com a sua condição humana e, portanto, com a sua pobreza. Para partilhar os limites e as fraquezas da nossa natureza humana, Ele mesmo se fez pobre […] Por isso, pode-se falar, também teologicamente, sobre uma opção preferencial de Deus pelos pobres. Esta “preferência” nunca diz respeito a um exclusivismo ou a uma discriminação em relação a outros grupos […] Pretende sublinhar o agir de Deus que, por compaixão, se dirige à pobreza e à fraqueza da humanidade inteira e que, querendo inaugurar um Reino de justiça, fraternidade e solidariedade, tem afeto particular por aqueles que são discriminados e oprimidos, pedindo também a nós, sua Igreja, uma decidida e radical posição em favor dos mais fracos. (Dilexi te , DT 1-2,5,9,16)

Vatican Media

Os pobres e o caminho da Igreja. Há oito séculos, São Francisco provocou um renascimento evangélico nos cristãos e na sociedade do seu tempo […] Segundo as palavras de São Paulo VI, o próprio Concílio Vaticano II segue nesta direção: “Aquela antiga história do bom samaritano foi exemplo e norma segundo os quais se orientou o nosso Concílio”. (São Paulo VI, Homilia na Missa da última Sessão do Concílio Vaticano II, 7/dez./1965). Estou convencido de que a opção preferencial pelos pobres gera uma renovação extraordinária tanto na Igreja quanto na sociedade, quando somos capazes de nos libertar da autorreferencialidade e conseguimos ouvir o seu clamor.

[…] Observar que o exercício da caridade é desprezado ou ridicularizado, como se fosse uma fixação somente de alguns e não o núcleo incandescente da missão eclesial, faz-me pensar que é preciso ler novamente o Evangelho, para não se correr o risco de o substituir pela mentalidade mundana. Se não quisermos sair da corrente viva da Igreja que brota do Evangelho, não podemos esquecer os pobres.

[…] O Apóstolo João escreve: “Aquele que não ama o seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê” (1 Jo 4,20). Na sua resposta ao doutor da lei, Jesus retoma dois antigos mandamentos: “Amarás o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração” e “Amarás o teu próximo como a ti mesmo”, unindo-os em um único mandamento […] É inegável que o primado de Deus no ensinamento de Jesus é acompanhado de outro princípio fundamental, segundo o qual não se pode amar a Deus sem estender o próprio amor aos pobres. O amor ao próximo é a prova tangível da autenticidade do amor a Deus […] Mesmo nos casos em que a relação com Deus não é explícita, o próprio Senhor nos ensina que qualquer ação de amor pelo próximo é, em algum modo, um reflexo da caridade divina: “Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim mesmo o fizestes” (Mt 25,40).

[…] A Igreja “reconhece nos pobres e nos que sofrem a imagem do seu fundador pobre e sofredor, procura aliviar as suas necessidades, e procura neles servir a Cristo” (Lumen gentium, LG 8) […] Nela “existe um vínculo indissolúvel entre a nossa fé e os pobres” (Evangelii gaudium, EG 48). (Dilexi te , DT 7,15,24-26,35)

Nenhum gesto de carinho será perdido. Os discípulos de Jesus criticaram a mulher que derramou um perfume muito precioso sobre a cabeça dele. “Para que este desperdício? Podia vender-se por bom preço e dar-se o dinheiro aos pobres. Mas o Senhor disse-lhes: Pobres sempre os tereis convosco; mas a mim nem sempre me tereis” (Mt 26,8-9.11). Aquela mulher tinha compreendido que Jesus era o Messias humilde e sofredor […] A simplicidade daquele gesto revela algo grandioso. Nenhuma expressão de carinho, nem mesmo a menor delas, será esquecida, especialmente se dirigida a quem se encontra na dor, sozinho, necessitado, como estava o Senhor naquela hora […] Por esta razão, recomendam-se as obras de misericórdia, qual sinal da autenticidade do culto […] A relação com o Senhor pretende libertar-nos do risco de viver as nossas relações segundo a lógica do cálculo e das vantagens, abrindo-nos à gratuidade que existe entre aqueles que se amam. (Dilexi te , DT 4,27)

Muitas formas de pobreza. Existem muitas formas de pobreza: a daqueles que não têm meios de subsistência material, a pobreza de quem é marginalizado socialmente e não possui instrumentos para dar voz à sua dignidade e capacidades, a pobreza moral e espiritual, a pobreza cultural, a de quem se encontra em condições de fraqueza ou fragilidade pessoal ou social, a de quem não tem direitos, nem lugar, nem liberdade.

[…] Recordemos que “duplamente pobres são as mulheres que padecem situações de exclusão, maus-tratos e violência, porque frequentemente têm menores possibilidades de defender os seus direitos. E, todavia, também entre elas, encontramos continuamente os mais admiráveis gestos de heroísmo cotidiano na defesa e cuidado da fragilidade das suas famílias” (Evangelii gaudium, EG 212). Embora em alguns países se observem mudanças importantes, “a organização das sociedades em todo o mundo ainda está longe de refletir com clareza que as mulheres têm exatamente a mesma dignidade e idênticos direitos que os homens. As palavras dizem uma coisa, mas as decisões e a realidade gritam outra” (Fratelli tutti, FT 23), especialmente se pensarmos nas mulheres mais pobres. (Dilexi te , DT 9,16)

As mentalidades e a ideologia. O compromisso em favor dos pobres e pela erradicação das causas sociais e estruturais da pobreza, embora tenha adquirido importância nas últimas décadas, ainda continua insuficiente […] As sociedades privilegiam, com frequência, linhas políticas e padrões de vida marcados por numerosas desigualdades, e às antigas formas de pobreza acrescentam-se outras novas, por vezes mais sutis e perigosas.

Ao compromisso concreto com os pobres ocorre associar também uma mudança de mentalidades que tenha incidências culturais. Efetivamente, a ilusão de uma felicidade que deriva de uma vida confortável leva muitas pessoas a ter uma visão da existência centrada na acumulação de riquezas e no sucesso social a todo o custo, a ser alcançado mesmo explorando os outros e aproveitando ideais e sistemas injustos, favoráveis aos mais fortes […] Os pobres não existem por acaso. Muito menos a pobreza é uma escolha, para a maioria deles. há muitos homens e mulheres que trabalham de manhã à noite, embora saibam que este esforço servirá apenas para sobreviver e nunca para melhorar verdadeiramente as suas vidas – e não podemos dizer que a maioria dos pobres está nessa situação por não ter “méritos”, segundo a visão que só têm mérito aqueles que tiveram sucesso na vida.

Há quem continue a dizer: “O nosso dever é rezar e ensinar a verdadeira doutrina”. Mas, desvinculando este aspecto religioso da promoção integral, acrescentam que só o Governo deveria cuidar deles, ou que seria melhor deixá-los na miséria e ensinar-lhes antes a trabalhar. Além disso, assumem-se, às vezes, critérios pseudocientíficos para dizer que a liberdade do mercado levará naturalmente à solução do problema da pobreza. Ou ainda, opta-se por uma pastoral das ditas elites, defendendo-se que, em vez de perder tempo com os pobres, é melhor cuidar dos ricos, dos poderosos e dos profissionais, para que, por meio deles, seja possível alcançar soluções mais eficazes. É fácil perceber a mundanidade que se esconde por trás destas opiniões: elas levam-nos a olhar para a realidade com critérios superficiais e desprovidos de qualquer luz sobrenatural, privilegiando relações que nos tranquilizam e buscando privilégios que nos favorecem. (Dilexi te , DT 10-14,114)

Dizer não a uma economia que mata. “Há regras econômicas que foram eficazes para o crescimento, mas não de igual modo para o desenvolvimento humano integral. Aumentou a riqueza, mas sem equidade, e assim nascem novas pobrezas” (Fratelli tutti, FT 21). 

É necessário continuar a denunciar a “ditadura de uma economia que mata” e reconhecer que “enquanto os lucros de poucos crescem exponencialmente, os da maioria situam-se cada vez mais longe do bem-estar. Tal desequilíbrio provém de ideologias que defendem a autonomia absoluta dos mercados e a especulação financeira. Por isso, negam o direito de controle dos Estados, encarregados de velar pela tutela do bem comum. Instaura-se uma nova tirania invisível, às vezes virtual, que impõe, de forma unilateral e implacável, as suas leis e as suas regras” (EG 56) […] Devemos empenhar-nos cada vez mais em resolver as causas estruturais da pobreza. (Dilexi te , DT 13,92-94) 

O trabalho e a promoção humana. O auxílio mais importante para uma pessoa pobre é ajudá-la a ter um bom trabalho, para que possa ter uma vida mais condizente com a sua dignidade, desenvolvendo as suas capacidades e oferecendo o seu esforço pessoal. O certo é que “a falta de trabalho é muito mais do que a falta de uma fonte de renda para poder viver. O trabalho é isto, mas é também muito mais. Ao trabalhar, tornamo-nos mais pessoas, a nossa humanidade floresce, os jovens só se tornam adultos quando trabalham. A Doutrina Social da Igreja considera o trabalho humano como participação na criação que continua todos os dias, inclusive graças às mãos, à mente e ao coração dos trabalhadores” (FRANCISCO, Discurso por ocasião do encontro com o mundo do trabalho na fábrica ILVA de Gênova, 27/mai/2017). (Dilexi te , DT 115) 

A opção preferencial pelos pobres. A opção preferencial pelos pobres está implícita na fé cristológica naquele Deus que se fez pobre por nós. “As agudas diferenças entre ricos e pobres nos convidam a trabalhar com maior empenho para ser discípulos que sabem partilhar a mesa da vida, mesa de todos os filhos e filhas do Pai, mesa aberta, inclusiva, na qual não falte ninguém. Por isso, reafirmamos nossa opção preferencial e evangélica pelos pobres” (V CONFERÊNCIA GERAL DO EPISCOPADO LATINO-AMERICANO E DO CARIBE, Mensagem final, 29/mai/2007). 

Para nós, cristãos, a questão dos pobres remete-nos à essência da nossa fé. A opção preferencial pelos pobres, ou seja, o amor que a Igreja tem por eles, como ensinava São João Paulo II, “é decisivo e pertence à sua constante tradição, impele-a a dirigir-se ao mundo no qual, apesar do progresso técnico-econômico, a pobreza ameaça assumir formas gigantescas” (Centesimus annus, CA 57). A realidade é que, para os cristãos, os pobres não são uma categoria sociológica, mas a própria carne de Cristo. Com efeito, não basta limitar-se a enunciar de modo genérico a doutrina da encarnação de Deus. Para entrar verdadeiramente neste mistério, é preciso especificar que o Senhor se faz carne, que tem fome e sede, que está doente e na prisão. “A Igreja pobre para os pobres começa pelo dirigir-se à carne de Cristo. Se nos fixarmos na carne de Cristo, começamos a compreender qualquer coisa, a compreender o que é esta pobreza, a pobreza do Senhor. E isso não é fácil!” (FRANCISCO, Vigília de Pentecostes com os movimentos eclesiais, 18/mai/2013). 

O coração da Igreja, por sua própria natureza, é solidário com os pobres, excluídos e marginalizados, com todos aqueles que são considerados “descartáveis” pela sociedade. Os pobres ocupam um lugar central na Igreja, porque “deriva da nossa fé em Cristo, que se fez pobre e sempre se aproximou dos pobres e marginalizados, a preocupação pelo desenvolvimento integral dos mais abandonados da sociedade” (EG 186). No coração de cada fiel, encontra-se “a exigência de ouvir este clamor que deriva da própria obra libertadora da graça em cada um de nós, pelo que não se trata de uma missão reservada apenas a alguns” (EG 188). 

“A pior discriminação que sofrem os pobres é a falta de cuidado espiritual […] A opção preferencial pelos pobres deve traduzir-se, principalmente, em uma solicitude religiosa privilegiada e prioritária” (EG 200). (Dilexi te , DT 99,110-114) 

A esmola. Convém dizer uma última palavra sobre a esmola, que hoje não goza de boa fama, frequentemente nem mesmo entre os cristãos. Não só é raramente praticada, como às vezes é até desprezada […] Não devemos correr o risco de deixar uma pessoa abandonada à própria sorte, sem o indispensável para viver dignamente. A esmola continua a ser um momento necessário de contato, encontro e identificação com a condição do outro. Para quem ama verdadeiramente, é evidente que a esmola não isenta as autoridades competentes das suas responsabilidades, nem elimina o empenho organizativo das instituições, muito menos substitui a legítima luta pela justiça. Ela convida, porém, a parar e a olhar nos olhos a pessoa pobre, tocando-a e partilhando com ela algo do que se tem. (Dilexi te , DT 115-116) 

Uma ‘questão familiar’. O cristão não pode considerar os pobres apenas como um problema social: eles são uma “questão familiar”. Pertencem “aos nossos”. A relação com eles não pode ser reduzida a uma atividade ou departamento da Igreja […] “Solicita-se dedicarmos tempo aos pobres, prestar a eles amável atenção, escutá-los com interesse, acompanhá-los nos momentos difíceis, escolhê-los para compartilhar horas, semanas ou anos de nossa vida, e procurando, a partir deles, a transformação de sua situação. Não podemos esquecer que o próprio Jesus propôs isso com seu modo de agir e com suas palavras” (Documento de Aparecida, DAp 397). 

[Diante da] parábola do bom samaritano (cf. Lc 10,25-37), volta a pergunta que interpela cada um de nós: “Com quem te identificas? […] Precisamos reconhecer a tentação que nos cerca de se desinteressar pelos outros, especialmente os mais frágeis. Crescemos em muitos aspectos, mas somos analfabetos no acompanhar, cuidar e sustentar os mais frágeis e vulneráveis das nossas sociedades desenvolvidas” (FT 64) […] As palavras finais da parábola evangélica – “Vai e faz tu também o mesmo” (Lc 10,37) – são um mandato que um cristão deve ouvir ressoar todos os dias no seu coração. 

Quer por meio do vosso trabalho, quer por meio do vosso empenho em mudar as estruturas sociais injustas, quer por meio daquele gesto de ajuda simples, muito pessoal e próximo, será possível que aquele pobre sinta serem para ele as palavras de Jesus: “Eu te amei” (Ap 3,9). (Dilexi te , DT 104-107,121) 

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