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O amor aos pobres, dos tempos evangélicos à realidade latino-americana

Nos trechos a seguir, selecionados da exortação apostólica Dilexi te, Leão XIV recapitula um pouco da história do amor aos pobres na vida da Igreja

Luciney Martins/O SÃO PAULO

No início do seu ministério público, Jesus apresenta-se na sinagoga de Nazaré lendo o livro de Isaías e aplicando a si mesmo a palavra do profeta: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me ungiu para anunciar a Boa-Nova aos pobres” (Lc 4,18; cf. Is 61,1). Ele se manifesta, portanto, como Aquele que, no hoje da história, vem realizar a proximidade amorosa de Deus, que em primeiro lugar é obra de libertação para quem está prisioneiro do mal, para os fracos e os pobres. Na verdade, os sinais que acompanham a pregação de Jesus são manifestações de amor e compaixão com as quais Deus olha para os doentes, os pobres e os pecadores que, em virtude da sua condição, eram marginalizados na sociedade, inclusivamente pela religião […] Ele proclama: “Felizes vós, os pobres, porque vosso é o Reino de Deus” (Lc 6,20). Efetivamente, Deus mostra predileção pelos pobres: a eles primeiramente se dirige a palavra de esperança e libertação do Senhor e, por isso, ninguém, apesar da condição de pobreza ou fraqueza, deve sentir-se abandonado […] “Deriva da nossa fé em Cristo, que se fez pobre e sempre se aproximou dos pobres e marginalizados, a preocupação pelo desenvolvimento integral dos mais abandonados da sociedade” (Evangelii gaudium, EG197).

A Carta de São Tiago lança aos fiéis dois apelos muito fortes que questionam a sua fé: “De que aproveita, irmãos, que alguém diga que tem fé, se não tiver obras de fé? Acaso essa fé poderá salvá-lo? Se um irmão ou uma irmã estiverem nus e precisarem de alimento cotidiano, e um de vós lhes disser: ‘Ide em paz, tratai de vos aquecer e de matar a fome’, mas não lhes dais o que é necessário ao corpo, de que lhes aproveitará? Assim também a fé: se ela não tiver obras, está completamente morta” (Tg 2,14-17).

Quando Paulo foi a Jerusalém para consultar os Apóstolos […] foi-lhe pedido que não se esquecesse dos pobres (cf. Gl 2,10). Ele, então, organizou diversas coletas para ajudar as comunidades pobres. Entre as motivações que oferece para tal gesto, merece destaque a seguinte: “Deus ama quem dá com alegria” (2 Cor 9,7). Para aqueles entre nós pouco inclinados a gestos gratuitos sem qualquer interesse, a Palavra de Deus indica que a generosidade em favor dos pobres é um verdadeiro bem para quem a pratica: efetivamente, ao agir assim somos amados por Deus de maneira especial. (Dilexi te , DT 21-33]

Os Padres da Igreja e os pobres. 39. Desde os primeiros séculos, os Padres da Igreja reconheceram no pobre um acesso privilegiado a Deus, um modo especial para O encontrar. A caridade para com os necessitados […era] expressão concreta da fé no Verbo encarnado […] Santo Inácio de Antioquia exortava os fiéis a não descuidarem o dever da caridade para com os mais necessitados, alertando-os a não proceder como os que se opunham a Deus […] O Bispo de Esmirna, Policarpo, recomendava precisamente aos ministros da Igreja o cuidado dos pobres: “Os presbíteros também sejam compassivos, misericordiosos para com todos. Tragam de volta os desgarrados, visitem todos os doentes, não descuidem da viúva, do órfão e do pobre, mas sejam sempre solícitos no bem diante de Deus e dos homens […] São Justino destaca que, no centro da liturgia cristã, não se podem separar o culto a Deus da atenção aos pobres […] São João Crisóstomo [proclama]: “Queres honrar o Corpo de Cristo? Não permitas que seja desprezado nos seus membros, isto é, nos pobres” […] Para Santo Ambrósio, […] a esmola é justiça restabelecida, não um gesto paternalista […] Santo Agostinho [considera que] o pobre não é apenas alguém a quem se presta auxílio, mas é presença sacramental do Senhor. Sustentava que as ofertas, quando nascidas do amor, não aliviam apenas a necessidade do irmão, mas purificam também o coração de quem as dá. (Dilexi te , DT 39-48]

Cuidar dos enfermos. No século XVI, São João de Deus fundou a Ordem Hospitalar que criou hospitais modelo que acolhiam a todos […] São Camilo de Lellis fundou a Ordem dos Ministros dos Enfermos, – os Camilianos –, assumindo como missão servir os doentes com dedicação total. Cuidando dos doentes com carinho maternal, como uma mãe cuida de seu filho, muitas mulheres consagradas desempenharam um papel ainda mais disseminado no cuidado sanitário dos pobres. As Filhas da Caridade de São Vicente de Paulo, as Irmãs Hospitaleiras, as Pequenas Servas da Divina Providência e tantas outras congregações femininas tornaram-se presença materna e discreta em hospitais, asilos e casas de saúde. 52. Hoje, esse legado continua em hospitais católicos, postos de saúde em regiões periféricas, missões sanitárias nas selvas, centros de acolhimento para toxicodependentes e hospitais de campanha em zonas de guerra. A presença cristã junto aos doentes revela que a salvação não é ideia abstrata, mas gesto concreto. No gesto de limpar uma ferida, a Igreja proclama que o Reino de Deus começa entre os mais vulneráveis. E ao fazer isso, permanece fiel Àquele que disse: “Adoeci e visitastes-me” (Mt 25,36). Quando a Igreja se ajoelha diante de um leproso, criança desnutrida ou moribundo anônimo, ela realiza a sua vocação mais profunda: amar o Senhor onde Ele está mais desfigurado. (Dilexi te , DT 50-52]

O cuidado com os pobres na vida monástica. A vida monástica, nascida no silêncio dos desertos, foi desde o início um testemunho de solidariedade […]São Basílio Magno, na sua Regra, não via contradição entre a vida de oração e recolhimento dos monges e a ação em favor dos pobres. Para ele, a hospitalidade e o cuidado com os necessitados eram parte integrante da espiritualidade monástica […] Os mosteiros beneditinos, com o tempo, tornaram-se lugares que contrastavam a cultura da exclusão. Os monges cultivavam a terra, produziam alimentos, preparavam remédios e ofereciam-nos, com simplicidade, aos mais necessitados. O seu trabalho silencioso foi fermento de uma nova civilização, na qual os pobres não eram um problema a resolver, mas irmãos e irmãs a acolher […] Eles não apenas ajudavam os pobres: tornavam-se próximos deles, irmãos no mesmo Senhor […] A tradição monástica ensina, portanto, que oração e caridade, silêncio e serviço, celas e hospitais, formam um único tecido espiritual. (Dilexi te , DT 53-58]

Testemunhas da pobreza evangélica. No século XIII, diante do crescimento das cidades, da concentração de riquezas e do surgimento de novas formas de pobreza, o Espírito Santo suscitou na Igreja um novo tipo de consagração: as Ordens mendicantes […] Não apenas serviam os pobres: tornavam-se pobres com eles. […]Essas Ordens, como os Franciscanos, os Dominicanos, os Agostinianos e os Carmelitas, representaram uma revolução evangélica […] Seu testemunho desafiava tanto a opulência clerical quanto a frieza da sociedade urbana. São Francisco de Assis tornou-se o ícone dessa primavera espiritual. Tomando por esposa a pobreza, quis imitar Cristo pobre, nu e crucificado. Em sua Regra, pede aos irmãos que “não tenham propriedade sobre coisa alguma”. A sua vida foi um contínuo despojamento. Francisco não fundou um serviço social, mas uma fraternidade evangélica. São Domingos de Gusmão fundou a Ordem dos Pregadores com radicalidade. Desejava anunciar o Evangelho com a autoridade que brota de uma vida pobre. Livres do peso dos bens terrenos, os frades podiam dedicar-se melhor à pregação. (Dilexi te , DT 63-66]

Libertar os cativos. Entre o final do século XII e os inícios do século XIII, quando muitos cristãos eram capturados no Mediterrâneo ou escravizados em guerras, surgiram duas ordens religiosas: a Ordem da Santíssima Trindade para a Redenção dos Cativos (Trinitários) e a Ordem da Bem-Aventurada Virgem Maria das Mercês (Mercedários […] com o carisma específico de libertar os cristãos escravizados, colocando os seus bens à disposição e, muitas vezes, oferecendo a própria vida em troca […] A missão da Igreja, quando fiel ao seu Senhor, é sempre proclamar a libertação. Ainda em nossos dias, nos quais “milhões de pessoas – crianças, homens e mulheres de todas as idades – são privadas da liberdade e constrangidas a viver em condições semelhantes às da escravatura”, [FRANCISCO. Mensagem para o XLVIII Dia Mundial da Paz] esta herança é continuada por estas Ordens e por outras instituições e congregações que atuam em periferias urbanas, zonas de conflito e corredores de migração. Quando a Igreja se inclina para quebrar as novas correntes que prendem os pobres, ela setorna sinal da Páscoa. (Dilexi te , DT 60-61]

Acompanhar os migrantes. A experiência da migração acompanha a história do povo de Deus. Abraão parte sem saber para onde vai; Maria e José fogem com o Menino para o Egito. O próprio Cristo viveu entre nós como estrangeiro. Por isso, a Igreja sempre reconheceu nos migrantes uma presença viva do Senhor. No século XIX, quando milhões de europeus emigravam em busca de melhores condições de vida, dois grandes santos se destacaram no cuidado pastoral dos migrantes: São João Batista Scalabrini, fundador dos Missionários de São Carlos, e Santa Francisca Xavier Cabrini, nascida na Itália e naturalizada estadunidense, a primeira cidadã dos Estados Unidos a ser canonizada […] A tradição da atividade da Igreja junto aos migrantes prosseguiu e hoje esse serviço expressa-se em iniciativas como os centros de acolhimento para refugiados, as missões nas fronteiras, e os esforços de Caritas Internacional e de outras instituições. (Dilexi te , DT 73-75]

A tradição latino-americana. No pós-Concílio, em quase todos os países da América Latina, sentiu-se com muita força a identificação da Igreja com os pobres e a participação ativa na sua redenção. Era o próprio coração da Igreja que se movia diante de tantos pobres afligidos pelo desemprego, subemprego e salários miseráveis, obrigados a viver em condições deploráveis. O martírio de São Oscar Romero, Arcebispo de San Salvador, foi ao mesmo tempo um testemunho e uma exortação viva para a Igreja […] As Conferências do Episcopado Latino-Americano e Caribenho (CELAM) em Medellín, Puebla, Santo Domingo e Aparecida constituem etapas significativas também para toda a Igreja. Eu mesmo, missionário no Peru durante tantos anos, devo muito a este caminho de discernimento eclesial. (Dilexi te, DT 89]

Um permanente desafio. Escolhi recordar esta história bimilenária de atenção eclesial aos pobres e com os pobres para mostrar que ela é parte essencial do caminho ininterrupto da Igreja. O cuidado com os pobres faz parte da grande Tradição da Igreja, como um farol de luz que, a partir do Evangelho, iluminou os corações e os passos dos cristãos de todos os tempos. Portanto, devemos sentir a urgência de convidar todos a entrar neste rio de luz e vida que provém do reconhecimento de Cristo no rosto dos necessitados e dos sofredores […] Como Corpo de Cristo, a Igreja sente como sua própria “carne” a vida dos pobres, que são parte privilegiada do povo a caminho. Por isso, o amor aos pobres – seja qual for a forma dessa pobreza – é a garantia evangélica de uma Igreja fiel ao coração de Deus. (Dilexi te , DT 103]

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