Nas histórias que líamos na infância ou naquelas que assistimos nos filmes, aventuras acontecem em lugares e situações excepcionais. Os heróis são extraordinários, capazes de façanhas que desafiam o bom-senso. Já o cotidiano é opaco, habitado por seres que transitam entre o trabalho e a casa, sob a sombra da monotonia. Mas a vida é sempre uma grande aventura, cheia de um brilho que se esconde sob a rotina, como pepitas de ouro em meio a impurezas. O que é preciso para que esse brilho se ilumine? Amor à pessoa, desejo sincero de acompanhá-la na aventura de construir sua vida. O empreendedorismo não é uma caminhada fácil, muitas vezes é a única alternativa em um contexto desafiador. A Aventura de Construir é uma Organização Sem Fins Lucrativos que atua desde 2011, apoiando empreendedores de baixa renda. No livro Brilhos da periferia, são relatadas as aventuras de alguns destes empreendedores, seus brilhos e suas lições para construir um Brasil melhor.

O livro Brilhos da Periferia é uma coletânea de relatos de 18 microempreendedores das periferias, acompanhados pela Aventura de Construir (AdC). São testemunhos de mulheres e homens que mobilizaram seus talentos, criatividade e coragem para, com muito trabalho, darem forma aos seus sonhos, iniciando pequenos negócios que se tornaram fonte de sustento familiar. O livro não apresenta meros cases de sucesso, nem fórmulas prontas, mas oferece histórias de vidas transformadas. Todas as histórias são de empreendedores apoiados pela AdC. Trata-se de uma experiência exemplar de desenvolvimento humano, com impactos positivos social e economicamente. Felizmente, uma entre tantas que temos no Brasil.
Essas histórias nos apresentam pessoas que, diante de realidades adversas, resolveram trilhar o caminho do empreendedorismo — árduo, repleto de obstáculos. Com coragem e persistência, começaram a estruturar seus negócios e fortalecê-los dia após dia, gerando transformações pessoais e econômicas. O que permite o sucesso dessas experiências?
Em primeiro lugar, o esforço dos próprios empreendedores. São homens e mulheres de diversas regiões – alguns imigrantes – atuando em diferentes áreas, cada um com sua trajetória, mas todos enfrentando diariamente inúmeros desafios para manter seus negócios funcionando e construir uma vida melhor para eles e suas famílias.
Para superar as dificuldades, contaram com o acompanhamento atento da AdC, que caminha com eles lado a lado, oferecendo apoio, escuta e orientação. A melhor palavra para designar este processo é “companhia”. Não se trata apenas de apoio financeiro, ainda que esse seja necessário. A formação para maior competência na produção e gestão também é fundamental. Mas, quem encontra esses empresários e os escuta falar da AdC, percebe alguma coisa a mais: a gratidão de quem encontrou uma companhia humana em seu caminho.
Todos precisamos encontrar um rosto humano que, de certa forma, nos revela nossa própria humanidade e nosso valor. Os pequenos empreendedores das periferias, que partem de situações precárias e desafiadoras, precisam ainda mais desse encontro. É bonito ver como demonstram, com carinho e um olhar realizado, gratidão à AdC e disponibilidade de serem eles mesmos esses rostos também para outros.
Esse caminho não seria possível sem a contribuição de parceiros, patrocinadores e voluntários que fazem da AdC uma experiência viável. Esses “ecossistemas de empreendedorismo social” estão se desenvolvendo entre nós, mas dependerão sempre do compromisso pessoal e do espírito solidário de todos os atores envolvidos.
Vendo as histórias a seguir, e tantas outras do livro, compreendemos que por trás de cada peça, cada sabor, cada detalhe, há uma trajetória marcada por luta, perseverança e esperança.

Descobrindo o próprio valor. Com uma história de perdas, desafios e superação, Shirlei Nunes Taquariano é representante e revendedora de semijoias desde 2022. Hoje, é proprietária da Boutique Taquariano e lidera um grupo de 41 vendedoras, algo que lhe parecia impossível no passado. Ainda jovem, sob o impacto da perda do pai, desistiu dos estudos aos 15 anos. Aos 17, casou-se e se dedicou ao lar, enfrentando crises de ansiedade após um assalto. Trabalhando como babá e faxineira, conseguia alguma renda, mas se sentia incapaz e sem valor.
Com muito esforço, o casal construiu uma casa e a vendeu com a intenção de comprar um terreno maior. No entanto, eles foram enganados e perderam o dinheiro e o terreno. Esse golpe foi tão forte que Shirlei pensou em desistir da vida, mas se voltou a Deus, pedindo uma oportunidade, prometendo fazer sempre o melhor em gratidão. Logo depois, começou a trabalhar como faxineira em uma multinacional. Decidiu voltar a estudar, matriculando-se no programa Educação de Jovens e Adultos (EJA), recuperando 20 anos de abandono do estudo. Concluiu o ensino fundamental e em seguida, formou-se técnica em Segurança do Trabalho.
Enquanto trabalhava na multinacional, na qual já exercia a função de auxiliar de laboratório, Shirlei começou a vender semijoias. Participou de um projeto da AdC, recebendo assessorias que a ajudaram a se organizar e perceber novas oportunidades para sua vida. O dinheiro, que antes saía sem controle, passou a ser administrado de forma eficaz, trazendo mais ganhos e satisfação.
Depois de um ano dividindo-se entre o emprego (CLT) e a venda de semijoias, precisava tomar uma decisão difícil. De um lado, havia a pessoa que duvidava de si mesma e estava tentada a desistir; do outro, a mulher disposta a aprender, crescer e tornar seu sonho realidade. Com coragem, dedicação e o apoio necessário, Shirlei escolheu dar o passo decisivo: deixou a empresa e mergulhou de cabeça no seu negócio. Hoje, vive do que construiu, trabalha com entusiasmo e lidera seu time de vendedoras.

Um caminho de luta e muita persistência. Edilsa Maria da Silva começou sua trajetória em 1999, ao lado do marido, abrindo um pequeno bar na garagem de casa. Hoje, com muito trabalho e aprendizado, é proprietária do Empório do Boca — restaurante que serve almoços, petiscos à noite e uma elogiada feijoada aos sábados, com o apoio de três colaboradores.
Aos 17 anos, chegou a São Paulo, vinda de Pernambuco, e passou a trabalhar em restaurantes, nos quais descobriu a paixão pela gastronomia. Seu caminho de empreendedora começou após ser demitida ao retornar da licença-maternidade. Decidiu, então, junto com o marido, abrir um bar na garagem de sua casa. Percebeu uma oportunidade quando peruas de transporte começaram a circular no bairro. Preparava refeições para os motoristas e passou a servir feijoada aos finais de semana.
Com o apoio do marido, o trabalho foi se consolidando. Durante a pandemia, mantiveram-secom entregas por delivery. Edilsa buscava novos aprendizados para aumentar a renda. Fez cursos e participou de um projeto na AdC, no qual aprendeu a organizar, manter e expandir seu negócio. Aos poucos, com muita luta e economia, construiram seu restaurante, perto de casa, em 2022. Hoje ela pode dedicar-se à cozinha, enquanto o marido cuida do atendimento e do caixa, e sua filha da administração.
É preciso uma companhia para crescer. Empreender não é nada fácil. Vontade e talento são importantes, mas não bastam. É preciso saber gerenciar, criar um plano de negócios, entender de marketing, e-commerce, precificação e, principalmente, contar com orientação de quem conhece a área para enfrentar os desafios que surgem a todo momento.
Edilsa é um bom exemplo disso. Ela conta que teve de aprender a usar o WhatsApp de forma profissional, fazer reuniões pelo Zoom e, sobretudo, a elaborar um plano de negócios — ferramenta decisiva para desenvolver seu empreendimento: “Foi isso que me ajudou, porque, se tivesse aberto o restaurante só com a cara e a coragem, sem essa ajuda, com certeza não teria dado certo”. Assim, com planejamento e refeições saborosas, estruturou um empreendimento que transformou sua vida e a de sua família.

Tudo parecia perdido. Gema Soto, imigrante venezuelana, idealizadora do Chevere Restaurante, que prepara alimentos saudáveis e sustentáveis, com receitas familiares e ancestrais da seu país, utilizando ingredientes orgânicos e agroecológicos, encontrou a mão amiga onde menos se esperaria.
A crise na Venezuela e a falta de perspectivas econômicas levaram Gema e sua família a emigrar. Após cruzar a fronteira com o Brasil, ela passou um tempo em Roraima e depois chegou a São Paulo. Enfrentou muitos desafios em busca de trabalho, moradia e estabilidade. Por um tempo, a fome era saciada com o pão e a fruta trazidos pelo marido e o filho do Bom Prato, programa estadual de alimentação a baixo custo. Gema conseguiu trabalho, mas viu-se vítima de um regime análogo à escravidão. Em seguida, arrumou emprego em uma creche e os desafios continuaram, desta vez, na forma de racismo.
Cansada e em crise, questionava por que tudo aquilo acontecia com ela. Decidiu parar, sentou-se no centro da cidade e chorou. Foi, então, que uma pessoa em situação de rua lhe ofereceu um copo de café e contou-lhe como São Paulo fora construída por migrantes. No final, perguntou: “Sabe por que eu moro na rua? Porque não consegui lidar com a perda de meu filho”. Gema percebeu que aquele homem não tinha como superar a sua perda, mas ela poderia começar de novo.
Uma amiga falou da AdC e ela agarrou a oportunidade de participar de um projeto de capacitação para imigrantes que desejavam empreender no setor gastronômico, começando um novo caminho.
Progredir é crescer com os outros, promovendo o desenvolvimento local. Muitas vezes, não percebemos o impacto que os pequenos negócios têm na economia e vida local. Pequenos empreendedores empregam pessoas que moram na região e movimentam outros negócios. E o impacto pode ser grande, como explica Diego Cruz, proprietário da Okê Aventura, empresa especializada em turismo de aventura e ecoturismo.
Ele trabalhou por 12 anos na área de tecnologia, mas o ambiente de trabalho afetou sua saúde e o fez questionar seus propósitos. Em 2019, decidiu mudar de direção, deixando o emprego para fundar a Okê Aventura. Ao analisar a atuação de sua empresa, junto com a AdC, Diego descobriu que seu negócio estava conectado a mais de 60 pessoas, não só em São Paulo, e que sua orientação nas trilhas e ambientes que visitava, visando a minimizar o impacto ambiental dos visitantes, contribuía positivamente para a economia, a sociedade e o meio ambiente.

A batalha diária das mulheres empreendedoras. Ao relembrar sua trajetória, Edilsa fala das enormes dificuldades que enfrentou, décadas atrás, para iniciar seu pequeno restaurante. Mesmo com o apoio do marido, precisava se desdobrar entre o trabalho e os cuidados com as filhas, já que não havia creches próximas. É por isso que, hoje, ela faz questão de empregar mulheres da região, especialmente mães de crianças pequenas. Com horários de trabalho mais flexíveis, as mães podem levar e buscar seus filhos na creche, entre outras necessidades.
Apesar do aumento no número de vagas em creches nos últimos anos, os desafios para as mulheres que empreendem continuam — e são ainda maiores para aquelas que chefiam suas famílias, acumulando sozinhas as responsabilidades do cuidado, da casa e da geração de renda. Segundo dados do Censo Demográfico de 2022, do IBGE, aproximadamente 49,1% dos lares brasileiros tinham mulheres como responsáveis, totalizando cerca de 36 milhões de mulheres nessa condição em todo o País. Para elas, trabalhar é enfrentar, todos os dias, o desafio de construir um negócio, lidar com a instabilidade econômica e cuidar dos filhos.
Michelle Cruz, proprietária da Menina Sabores – empresa que produz licores, compotas, geleias e doces a partir de receitas tradicionais de famílias quilombolas remanescentes – conhece bem essa realidade. Justamente por isso, sonha em gerar oportunidades de profissionalização e renda para que outras mulheres adquiram também independência financeira. Também planeja criar uma escola de culinária, na qual possa compartilhar seus conhecimentos e convidar profissionais de diferentes áreas, como confeitaria, para ampliar as possibilidades de formação. O objetivo é abrir caminhos especialmente para mulheres mais velhas, muitas delas diaristas, que, após uma vida inteira de trabalho, enfrentam grandes dificuldades para se recolocar no mercado.