São João Paulo II na Evangelium vitae (EV 21-22) nos mostra como a “cultura da morte” nasce da perda do sentido de Deus e da capacidade de mergulhar a fundo na própria experiência humana.
Reivindicar o direito ao aborto, ao infanticídio, à eutanásia, e reconhecê-lo legalmente, equivale a atribuir à liberdade humana um significado perverso e iníquo: o de um poder absoluto sobre os outros e contra os outros. Mas isto é a morte da verdadeira liberdade: “Em verdade, em verdade vos digo: todo aquele que comete o pecado é escravo do pecado” (Jo 8, 34).
Quando se procuram as raízes mais profundas da luta entre a “cultura da vida” e a “cultura da morte”, não podemos nos deter nesta noção perversa de liberdade. É necessário chegar ao coração do drama contemporâneo: o eclipse do sentido de Deus e do ser humano, típico de um contexto social e cultural dominado pelo secularismo […] Perdendo o sentido de Deus, tende-se a perder também o sentido do ser pessoa, da sua dignidade e da sua vida; por sua vez, a sistemática violação da lei moral, especialmente na grave matéria do respeito à vida humana e à sua dignidade, produz uma espécie de ofuscamento progressivo da capacidade de ver a presença vivificante e salvífica de Deus […]
“Sem o Criador, a criatura não subsiste […] Se esquece Deus, a própria criatura se obscurece” (Gaudium et spes, GE 36). O ser humano não mais consegue perceber-se como “misteriosamente outro” face às diversas criaturas terrenas; considera-se apenas como um de tantos seres vivos, como um organismo que, no máximo, atingiu um estado muito elevado de perfeição. Fechado no estreito horizonte da sua dimensão física, reduz-se de certo modo a “uma coisa”, deixando de captar o caráter “transcendente” do seu “existir humano”. Deixa de considerar a vida como um dom esplêndido de Deus, uma realidade “sagrada” confiada à sua responsabilidade e, consequentemente, à sua amorosa defesa, à sua “veneração”. A vida torna-se simplesmente “uma coisa”, que ele reivindica como sua exclusiva propriedade, que pode plenamente dominar e manipular.
Diante da vida que nasce e da vida que morre, a pessoa já não é capaz de se deixar interrogar sobre o sentido mais autêntico da sua existência, assumindo com verdadeira liberdade estes momentos cruciais do próprio “ser”. Preocupa-se somente com o “fazer”, e, recorrendo a qualquer forma de tecnologia, busca programar, controlar e dominar o nascimento e a morte. Estes acontecimentos, em vez de experiências primordiais que requerem ser “vividas”, tornam-se coisas que se pretende simplesmente “possuir” ou “rejeitar”.