O ‘Magnificat’ e a Doutrina Social da Igreja

Luciney Martins/O SÃO PAULO

Em outubro, os olhos se voltam para Maria. Seu cântico, Magnificat (Lc 1,46-56), e a Doutrina Social da Igreja (DSI) são como que igarapés que, juntando suas águas, convergem para formar o grande rio da justiça social e da dignidade da pessoa humana. Em ambos, sobressaem dois aspectos que se complementam: o primeiro tem a ver com a teologia e a espiritualidade; o segundo volta-se para a ação de ordem sociopastoral, alicerçada numa atitude eclesial e sinodal.

De acordo com o relato do evangelista Lucas, após o diálogo entre o anjo Gabriel e Maria, esta conclui: “Eis aqui a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra” (Lc 1,38). Logo adiante, Maria reconhece que “o Senhor fez grandes coisas em meu favor”. De que forma conciliar a condição de serva com a expressão “grandes coisas em meu favor”? Do ponto de vista teológico e espiritual, a obediência ao projeto de Deus é filha direta da liberdade em relação a si mesma. Ou seja, quanto mais a pessoa é livre dos projetos pessoais, dos instintos, desejos e próprios interesses, tanto mais estará aberta à ação do espírito. O primeiro ato missionário é justamente sair de si mesmo, o que leva à “Igreja em saída”. Do ponto de vista sociopastoral, a missão desdobra-se num compromisso concreto pela busca de oportunidades iguais para todas as pessoas. Seguindo as linhas mestras da DSI, mais do que dobrar esforços pelo progresso técnico e o crescimento da produção a qualquer custo, importa antes priorizar a distribuição justa e equitativa dos frutos do trabalho humano (cf., por exemplo, Gaudium et spes Populorum progressio).

É fartamente conhecido e notório, hoje em dia, o nível de desigualdade socioeconômica, quer no âmbito nacional e regional, quer no âmbito internacional. Um punhado de milionários e bilionários detém uma porcentagem de riqueza equivalente a praticamente metade dos bens do mundo. E a população de baixa renda, por sua vez, na base da pirâmide, vive precariamente com “as migalhas que caem da mesa do rico avarento”. Com as taxas de desemprego, subemprego e trabalho informal, aumenta a vulnerabilidade dos trabalhadores.

Daí a irrupção do espírito de Deus no cântico de Maria: “O Senhor dispersou os homens de coração orgulhoso, depôs os poderosos de seus tronos e exaltou os humildes; cumulou de bens os famintos e despediu os ricos de mãos vazias”. No tom do Magnificat, não predomina uma atitude de vingança, no sentido de inverter a pirâmide social, elevando os pobres ao pico e rebaixando os ricos à base, o que reproduziria a mesma situação de injustiça. Trata-se, isso sim, de oferecer a todas as pessoas as mesmas oportunidades, a fim de que, de cabeça erguida, possam ver seus direitos garantidos com dignidade e paz, num mundo fraterno e solidário. O desafio, tanto no Magnificat quanto na DSI, é empenhar-se por uma redistribuição equilibrada e justa, seja dos bens na natureza, seja dos bens provenientes do trabalho.

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