O que o nosso trabalho tem a ver com as estrelas? Quando máquinas e inteligências artificiais parecem cada vez mais capazes de fazer o trabalho humano, essa pergunta pode nos levar a uma compreensão fascinante do sentido de nosso agir.
Na carta encíclica Laborem exercens (LE 9), São João Paulo II identifica, nos dois primeiros capítulos do Livro do Gênesis (1, 28; 2, 15), no chamado ao domínio e ao cuidado com a criação, a vocação natural do ser humano ao trabalho. O homem não foi criado para o ócio contemplativo. Contudo, adveio a queda e essa dimensão fundamental, embora não abolida, foi brutalmente afetada, e o autor do Gênesis é explícito a esse respeito: “[…] maldita é a terra por tua causa; em fadiga comerás dela todos os dias. Ela te produzirá espinhos e abrolhos; e comerás das ervas do campo. Do suor do teu rosto, comerás o teu pão” (Gn 3, 17-19).
O que tem a ver com as estrelas? O pecado original, então, afetou a relação do homem com o trabalho, inserindo em seu âmago uma fadiga, um “suor”. É o que se extrai do Gênesis e da experiência de todos nós. Mas por quê? O que há no trabalho do homem após a queda que gera nele esse cansaço?
Vem-me à mente uma passagem da vida de Dom Luigi Giussani (1922 – 2005). À noite, um casal de namorados se abraçava carinhosamente. Ao vê-lo passar, os dois se afastaram em um misto de susto e pudor. O sacerdote perguntou, para constrangimento do casalzinho, se havia algo de errado no que estavam fazendo e, se não, por que é que haviam se afastado. Depois, vendo o céu estrelado, perguntou-lhes: “Isso que vocês estão fazendo [abraçando-se], cosa c’entra con le stelle?”. Ou seja, o que tem a ver com as estrelas desta noite? Essa pergunta era fruto da intuição de que a moralidade não é um conjunto de regras ou de proibições, mas um nexo real entre a ação do homem, aqui e agora, e a totalidade das coisas, do cosmos e, o que dá no mesmo, entre a ação do homem e o seu próprio destino.
A fadiga – mais do que a meramente física, mas aquela que é também existencial – que caracteriza o trabalho humano depois do pecado original resulta justamente da desconexão presente como possibilidade na pergunta de Giussani. “Isso que você está fazendo no escritório, na sala de aula, na fábrica, na oficina, em casa, cosa c’entra con le stelle?”. “Nada”, muitos respondemos, “trabalhamos porque devemos, porque precisamos de dinheiro, porque a vida é assim… Mas com o destino, o cosmos, as estrelas, nada”. A resposta negativa a essa provocação resulta inevitavelmente, pela própria constituição da natureza humana, em cansaço, perda de sentido, exaustão. Ou então, em outra face do mesmo fenômeno, em ativismo frenético, idolatria ao dinheiro, autorreferencialidade sufocante do trabalho. Na desestabilização do pecado, o trabalho tende ao tédio e à angústia. Esse mal-estar nada mais é do que o sintoma subjetivo da redução vital que sofre o homem ao desconectar-se desse algo a que Giussani faz referência pelo símbolo das estrelas. Encaramos aqui as consequências ontológicas da queda de Adão: o esmaecimento do sujeito, a submersão do rosto, o estreitamento da pessoa. Importa compreender mais precisamente, portanto, qual é a conexão que precisa ser refeita a fim de que a pessoa restaure sua estatura humana e viva a relação com o trabalho à altura do seu chamado.
A metáfora das estrelas vai além de seu efeito poético. É no vocábulo latino “sidera”, estrela, que tem raiz outra palavra latina, desiderium, “desidera”, que deu origem ao português “desejo”. O que desejo tem a ver com as estrelas… Nada neste mundo nos satisfaz. O nosso desejo é “de-sidera”, é de outro mundo. Constitutivamente. Visceralmente. Assim como não há nenhum animal em crise com a própria vida, não há nenhum ser humano, por mais bem-sucedido e realizado, que esteja totalmente em paz, repousado. O desejo humano é inexaurível, é um conjunto de exigências originárias de bem, de justiça, de beleza, de amor, que não se aquietam com a posse de nenhum bem criado. Reconhecer essa “desproporção estrutural”, como diz Giussani em O senso religioso (São Paulo: Companhia Ilimitada, 2021), entre o nosso desejo e os vários objetos disponíveis, é o passo inicial para estabelecer uma correta perspectiva para com a vida.
Um homem será plenamente sujeito, revelará o seu rosto, trabalhará como pessoa quando conectado, consciente, envolvido na dinâmica de seu próprio desejo, sem aceitar substitutivos. Isso significa encontrar em cada gesto, em cada instante, esse “ângulo aberto para o infinito”, pelo qual somos restaurados em nossa humanidade.
Por uma personalização radical: a emersão do rosto de Cristo. “Somos adultos”, isto é, pessoas, homens e mulheres, à altura de nossa vocação, por força da experiência que fazemos desse olhar às coisas “do único ponto exato que nos foi dado”: as estrelas, que estão sempre lá, fiéis, estáveis, exatas, e sua correspondência com nosso desejo. A partir desse ponto transcendente, olhamos as coisas “como se fosse pela última vez”, ou seja, com aquela distância que paradoxalmente nos permite possuí-las plenamente.
Esse momento passa a ser a fonte da qual brotam o nosso trabalho e os nossos relacionamentos. É o momento também que nos permite romper com o ciclo diabólico de orgulho, violência, ambição, inveja, ciúme, que revira e consome os homens desde sempre. Somos libertos da rivalidade e passamos, então, a olhar o próximo com olhos justos e livres, livres porque não mais aguilhoados pela ânsia de dominar ou de ser dominado, não mais com o olhar temeroso ou arrogante de quem sempre se pergunta, em presença do próximo, se ele será seu senhor ou seu servo. Está ou não está aqui a chave para redimir o ambiente do trabalho e fazer dele um local de educação do sujeito?
Essa experiência nos lança ao encontro dos outros e gera comunidades. Uma vez que a tenhamos vivido, tentaremos ver nos outros se eles já viveram um momento idêntico e, na solidariedade que então se cria, forma-se uma companhia, uma amizade. E é necessário que estejamos com os outros, mantendo os olhos no momento mais alto de seus destinos. É aquilo que Giussani quer dizer quando afirma que o senso religioso, esse conjunto de exigências originárias da pessoa que a reporta ao infinito, realiza a unidade entre os homens que trabalham (cf. O eu, o poder e as obras. Vargem Grande Paulista: Editora Cidade Nova, 2001)
Aqueles que perseveram na busca pela satisfação de seu desejo tem em si aflorada a pergunta para a qual o Cristianismo é uma resposta. Essa unidade entre os homens que mantêm seu olhar para o momento mais alto de seu destino pode, pela graça da fé, virar a comunidade dos que creem no Cristo. Estaremos, então, diante da personalização mais radical que há, uma personalização que se identifica com a imersão no próprio rosto de Cristo, “porque a presença de Cristo na história, exatamente como fisionomia, perdura visivelmente como forma encontrável na unidade dos que creem” (GIUSSANI, L. Por que a Igreja. São Paulo: Companhia Ilimitada, 2015).
* Trecho da exposição feita na mesa-redonda “O mundo precisa de sujeitos: o emergir de um rosto no ambiente de trabalho”, do 11º FÓRUM NACIONAL DA COMPANHIA DAS OBRAS (CdO): “O sentido do trabalho” (São Paulo, 2023)
Excelente!!!!