O Papa Francisco reforça, na Fratelli tutti, a importância da fraternidade e da amizade social. A pessoa humana é um ser social, que se realiza nas relações com os demais. Não é uma novidade na doutrina católica. Os cristãos sempre souberam que a caridade deve se manifestar como virtude social, que determina nossas relações de uns para com os outros. Orientados por variadas visões políticas, poderemos ter ideias diferentes sobre as melhores formas de viver a dimensão política da amizade social e da construção do bem comum. Contudo, permanece sempre o compromisso cristão de, pensemos como quer que pensemos, nos perguntarmos como estamos colaborando para estar juntos e apoiarmos particularmente nossos irmãos em dificuldade. Para os cristãos, as diferenças deveriam ser ocasião para o diálogo e para a busca sincera pela verdade, não para a condenação mútua e a divisão.
“FRATELLI TUTTI”, escrevia São Francisco de Assis, dirigindo-se a seus irmãos e irmãs para lhes propor uma forma de vida com sabor do Evangelho. Destes conselhos, quero destacar o convite a um amor que ultrapassa as barreiras da geografia e do espaço; nele declara feliz quem ama o outro, “o seu irmão, tanto quando está longe como quando está junto de si” [Admoestações, 25. Fonti franciscane, 155] Com poucas e simples palavras, explicou o essencial de uma fraternidade aberta, que permite reconhecer, valorizar e amar todas as pessoas, independentemente da sua proximidade física, do ponto da terra onde cada uma nasceu ou habita. Este Santo do amor fraterno, da simplicidade e da alegria, que me inspirou a escrever a encíclica Laudato si’, volta a inspirar-me para dedicar esta nova encíclica à fraternidade e à amizade social. Com efeito, São Francisco, que se sentia irmão do sol, do mar e do vento, sentia-se ainda mais unido aos que eram da sua própria carne. Semeou paz por toda a parte e andou junto dos pobres, abandonados, doentes, descartados, dos últimos (Fratelli tutti, FT 1-2).
O amor, e não uma posição ideológica, nos impulsiona. O amor implica algo mais do que uma série de ações benéficas. As ações derivam de uma união que propende cada vez mais para o outro, considerando-o precioso, digno, aprazível e bom, independentemente das aparências físicas ou morais. O amor ao outro por ser quem é, impele-nos a procurar o melhor para a sua vida. Só cultivando esta forma de nos relacionarmos é que tornaremos possível aquela amizade social que não exclui ninguém e a fraternidade aberta a todos (FT 94).
O valor e a dignidade da pessoa. Para se caminhar rumo à amizade social e à fraternidade universal, há que fazer um reconhecimento basilar e essencial: dar-se conta de quanto vale um ser humano, de quanto vale uma pessoa, sempre e em qualquer circunstância. Se cada um vale assim tanto, temos de dizer clara e firmemente que “o simples fato de ter nascido num lugar com menores recursos ou menor desenvolvimento não justifica que algumas pessoas vivam menos dignamente“ (Evangelii gaudium, EG 190). Trata-se de um princípio elementar da vida social que é, habitualmente e de várias maneiras, ignorado por quantos sentem que não convém à sua visão do mundo ou não serve os seus objetivos (FT 106).
O necessário e justo empenho com a política. Para tornar possível o desenvolvimento de uma comunidade mundial capaz de realizar a fraternidade a partir de povos e nações que vivam a amizade social, é necessária a política melhor, a política colocada a serviço do verdadeiro bem comum. Mas hoje, infelizmente, muitas vezes a política assume formas que dificultam o caminho para um mundo diferente (FT 154).
Juntos, procurando a “caridade social”. Reconhecer todo o ser humano como um irmão ou uma irmã e procurar uma amizade social que integre a todos não são meras utopias. Exigem a decisão e a capacidade de encontrar os percursos eficazes, que assegurem a sua real possibilidade. Todo e qualquer esforço nesta linha torna-se um exercício alto da caridade. Com efeito, um indivíduo pode ajudar uma pessoa necessitada, mas, quando se une a outros para gerar processos sociais de fraternidade e justiça para todos, entra no “campo da caridade mais ampla, a caridade política” (Pio XI). Trata-se de avançar para uma ordem social e política, cuja alma seja a caridade social (Quadragesimo anno, QA 88). Convido, uma vez mais, a revalorizar a política, que é uma sublime vocação, é uma das formas mais preciosas de caridade, porque busca o bem comum (FT 180).
A unidade é superior ao conflito. Várias vezes, propus “um princípio que é indispensável para construir a amizade social: a unidade é superior ao conflito. (…) Não é apostar no sincretismo ou na absorção de um no outro, mas na resolução em um plano superior que preserva em si as preciosas potencialidades das polaridades em contraste” (EG 228). Sabemos bem que, todas as vezes que aprendemos, como pessoas e comunidades, a olhar para mais alto do que nós mesmos e os nossos interesses particulares, a compreensão e o compromisso recíprocos transformam-se em solidariedade; (…) numa área em que os conflitos, as tensões e mesmo aqueles a quem seria possível considerar como contrapostos no passado, podem alcançar uma unidade multiforme que gera nova vida (FT 245).
Com os mais pobres. A promoção da amizade social implica não só a aproximação entre grupos sociais distanciados a partir de um período conflituoso da história, mas também a busca de um renovado encontro com os setores mais pobres e vulneráveis. A paz não é apenas ausência de guerra, mas o empenho incansável – especialmente daqueles que ocupam um cargo de maior responsabilidade – de reconhecer, garantir e reconstruir concretamente a dignidade, tantas vezes esquecida ou ignorada, de irmãos nossos, para que possam sentir-se os principais protagonistas do destino da própria nação (FT 233).
Identificar-se com os últimos, para ser irmão de todos. Mas quero terminar lembrando uma outra pessoa de profunda fé, que, a partir da sua intensa experiência de Deus, realizou um caminho de transformação até se sentir irmão de todos. Refiro-me ao Beato Charles de Foucauld [NR: canonizado pelo Papa Francisco em 15/05/2022]. O seu ideal de uma entrega total a Deus encaminhou-o para uma identificação com os últimos, os mais abandonados no interior do deserto africano. Naquele contexto, afloravam os seus desejos de sentir todo o ser humano como um irmão, e pedia a um amigo: ‘Peça a Deus que eu seja realmente o irmão de todos’. Enfim queria ser ‘o irmão universal’. Mas somente identificando-se com os últimos é que chegou a ser irmão de todos. Que Deus inspire este ideal a cada um de nós. Amém (FT 286-287).