‘Os valores de minha vida pública’

A seguir, trechos do Discurso que Franco Montoro fez na Câmara Municipal de São Paulo por ocasião de sua indicação para compor o Conselho da República, em 1997. Ele havia sido vereador em 1950.

‘Alegoria do Bom Governo’, de Ambrogio Lorenzetti – o Bom Governo aparece ladeado
pela Justiça e pela Paz, tendo acima dele a Fé, a Esperança e a Caridade

Reprodução da obra “Alegoria do Bom Governo, de Ambrogio Lorenzetti”

Meus amigos, as experiências de 80 anos de vida, 60 de magistério e ação social e mais de 45 de atividade política, com seus acertos e erros, vitórias e decepções, levaram-me a lembrar de alguns valores e sonhos de minha vida pública, que se transformaram ou podem se transformar em realidade. Eis os valores de minha vida pública:

O primeiro é o respeito às pessoas. Como valor fundamental da política, creio na dignidade da pessoa humana. Não da pessoa abstrata das reflexões filosóficas. Mas das pessoas concretas e vivas que estão ao nosso lado, em nosso bairro, em nossa cidade e povoam a terra. Minha filha Monica, com a sensibilidade de artista, fixou esse sentimento: “E saiba que meu canto fica orgulhoso, não por seres meu pai, nem por seres meu irmão, mas pelo respeito aos homens, que me deixas de lição.”

Se unirmos o Brasil em torno da ideia generosa de um desenvolvimento cujo centro seja a pessoa humana, impulsionaremos um movimento de transformações sociais e políticas que poderão marcar a nossa história.

A esse valor está ligada a ética da solidariedade. Para a transformação do quadro de misérias, injustiças e desigualdades que nos cercam, o primeiro passo é uma atitude de ética de solidariedade. Não podemos aceitar os braços cruzados das indiferenças burguesa, nem os gestos de violência dos fanáticos e intolerantes de qualquer raça, ideologia ou religião. Em oposição à inconsciência dos fatos e à violência dos intolerantes, é preciso abrir os braços da fraternidade. Se somos filhos de Deus, somos todos irmãos.

Do velho solho da Revolução Francesa: “Liberdade, igualdade e fraternidade”, a liberdade sem limites leva à destruição da igualdade, a igualdade imposta significa o esmagamento da liberdade. Só a fraternidade poderá conciliar as aspirações humanas de liberdade e igualdade.

O caminho para essa realização é a democracia, valor fundamental da vida pública, a ser conquistado em um esforço de todos os dias. Como adverte Maritain:  “A tragédia das democracias é que ainda não conseguiram realizar a democracia. Mas, apesar de suas imperfeições e de seus limites, a democracia é o único caminho por onde passam as energias progressivas da história humana”

Não se trata apenas do Estado, mas da sociedade democrática, que respeita a pluralidade de grupos sociais, como a família, a escola, a igreja, a empresa, o clube, o partido e as demais associações, que constituem o ambiente real em que as pessoas vivem e se desenvolvem. Essas forças vivas fazem a riqueza da vida social e são as grandes promotoras do bem comum.

Entre todos os grupos sociais, se destaca a família como “núcleo natural e fundamental da sociedade”, com seu “direito à proteção do Estado”, nos termos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, artigo 16.

A descentralização é outro valor fundamental. Meu Governo, em São Paulo, teve como lema “descentralização e participação”. A centralização do poder, o paternalismo e a tutela governamental têm sido a tradição de nossa história política e administrativa. Essa concentração de poderes é talvez o maior problema da vida pública brasileira. É preciso substituí-la pela descentralização da máquina do governo. Aumentar progressivamente as responsabilidades e recursos dos Estados e sobretudo dos Municípios como poder local. Tornar o governo mais perto do povo.

Tudo o que puder ser feito por uma comunidade menor não deve ser feito por um organismo de nível superior. As iniciativas e atividades locais estão mais perto da população e são por isso mais realistas, econômicas e eficientes. É preciso aproveitar esse imenso potencial dos recursos materiais e humanos da sociedade.

Daí decorrem alguns princípios de uma administração democrática:

a. Tudo que puder ser feito pela própria sociedade deve ser feito por ela e não pelo poder público.

b. O poder público deve intervir só e sempre em que for necessária sua atuação. Nem Estado mínimo, nem Estado máximo. Mas, sim, Estado quando necessário. E isso acontece sempre que houver uma exigência de interesse público.

c. Na intervenção do poder público, deve haver uma ordem de prioridades. Em primeiro lugar, deve atuar o Município. Tudo que puder ser feito pelo Município, deve ser feito por ele e não pelo Estado ou pelo Governo Federal.

d. Da mesma forma, o Estado só deve fazer o que não puder ser bem-feito pela sociedade ou pelo Município.

e. E o Governo Federal só deverá fazer o que não puder ser bem-feito pelos Estados, pelos Municípios ou pela sociedade. Terá as insubstituíveis e elevadas funções de assegurar a defesa nacional, representar o Brasil nas relações internacionais, exercer a alta direção da política econômica e social do país, emitir moeda, legislar sobre matéria de interesse nacional, exercer ação regulamentar sempre que exigida pelo interesse público e, sobretudo, rigorosa ação fiscalizadora no tocante à moralidade e publicidade na aplicação de recursos públicos.

O critério básico para a delimitação dessas atribuições deve ser sempre o bem comum, isto é, o bem-estar e a qualidade de vida da população, e não o interesse de determinados grupos ou setores. O que for melhor para a população é melhor para o país.

Participação e Cidadania. A participação da sociedade é fundamental. Descentralizar é fazer com que muitos participem. Para que haja um desenvolvimento democrático, a palavra-chave chama-se “participação”. Ela é o caminho para superar a passividade e a indiferença. Participação é a ideia força de um novo desenvolvimento. Ela abrange todas as formas de substituição do paternalismo autoritário pela cooperação dos setores interessados. A população e os diferentes setores da sociedade são os grandes interessados na solução efetiva dos problemas coletivos. São eles também, quem melhor conhece e sente os problemas reais.

O crescente movimento de participação social está ligado a noção de “cidadania”. Cidadania não é apenas um direito, mas sobretudo tomada de consciência e responsabilidade social. Camadas cada vez mais amplas da população tomam consciência do caráter apenas “formal” de antigas fórmulas democráticas, que se limitam a assegurar o direito de voto de 4 em 4 anos, e passam a defender novas modalidades de participação ativa, que lhes permita passar da condição de “súditos” para a de “cidadãos”, de “espectadores” passivos da história para seus “agentes”.

Dentro de uma perspectiva humanista e não totalitária, o Estado é “meio” a serviço das pessoas e do bem comum e não “fim” e si mesmo ou entidade superior aos direitos fundamentais do homem e da sociedade, hoje expressamente reconhecidos no documento mais importante deste século, que é a Declaração Universal dos Direitos Humanos. […]

Conclusão. Há, finalmente, um valor que de certa forma é a síntese de todos os valores e sonhos que tem alimentado minha vida pública: a “Justiça” e seu corolário, a “Paz”. Lutar pela justiça significa trabalhar para que o desenvolvimento do país seja feito com equidade e respeito à dignidade de todas as pessoas.

Meus amigos, vejo com satisfação que o respeito a esses valores une os diferentes partidos, companheiros e amigos que hoje me homenageiam. Essa união vem ilustrar a grande lição de Teilhard de Chardin: “quando a gente se eleva, a gente se encontra”. Acima de diferenças e interesses menores é importante lutar por grandes causas. Elas têm o poder de conquistar seguidores. E, pelo contrário, as pessoas sofrem quando são convidadas apenas para o medíocre.

Falamos muito em valores e sonhos. Quero concluir referindo-me às palavras de um grande líder e sonhador latino-americano, Dom Helder Câmara: “Quando sonhamos sozinhos, é só um sonho; mas quando sonhamos juntos, é o começo de uma nova realidade”. Vamos sonhar juntos e trabalhar, certos de que esse mundo de justiça e paz não será uma dádiva dos poderosos, mas uma conquista dos que souberam lutar pela justiça e pela liberdade.

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