A abolição da escravatura, no Brasil, completou 135 anos em 2023. Contudo, basta olhar para um quadro de indicadores sociais, com dados consolidados em função de cor e raça, para perceber que estamos longe de uma justa equidade racial no País. A ideia de uma superioridade racial intrínseca já foi há muito desacreditada tanto por estudos populacionais, que mostram a elevada identidade genética entre comunidades com aparência física muito diversa, quanto psíquicos e comportamentais, que não encontraram diferenças intelectuais entre as etnias, quando os indivíduos têm acesso às mesmas condições e oportunidades. Mesmo que ainda hoje encontremos defensores de ideias supremacistas, é forçoso reconhecer que se trata de uma posição ideológica que nega a realidade, apegando-se aos resultados de processos históricos injustos e excludentes.
As estruturas sociais tendem a se reproduzir, perpetuando-se ao longo do tempo. Famílias com mais condições econômicas oferecem mais e melhores oportunidades a seus filhos jovens nascidos em famílias pobres têm mais dificuldade de estudar, empreender um negócio, adquirir estabilidade econômica. Vestibulares e processos seletivos medem não apenas a aptidão efetiva dos candidatos, mas principalmente as condições em que se formaram e com as quais chegaram até aquele momento. As avaliações “meritocráticas” frequentemente chegariam a resultados muito diferentes se medissem realmente a capacidade do candidato em função das oportunidades reais que teve. Preconceitos fecham portas, desde a chance de uma promoção até a obtenção de um financiamento para uma empresa rentável.
Diante dessa situação, a construção de uma sociedade mais justa implica políticas afirmativas, ações que promovem a igualdade de oportunidades para grupos historicamente marginalizados ou desfavorecidos – como são as populações pretas e pardas do Brasil. É comum ouvir-se críticas a essas políticas, argumentando-se que promovem uma discriminação inversa, favorecem pessoas não capacitadas para os cargos que irão ocupar e acirram conflitos que poderiam ser evitados. Contudo, o problema não é a existência de políticas afirmativas, mas, sim, a forma como são desenhadas e implementadas. Ações afirmativas necessárias, se avaliadas como ineficientes ou injustas, não devem ser abolidas, mas, sim, reconfiguradas.
A política de cotas raciais ou socioeconômicas, por exemplo, já vem sendo adotada nas universidades brasileiras há quase 20 anos. Foram objeto de análises criteriosas em várias situações. Numa revisão desses estudos, observou-se que, em universidades estaduais brasileiras, os cotistas têm obtido rendimento similar ao dos demais estudantes, superando-os nos índices de diplomação e apresentando menores taxas de evasão (PINHEIRO e cols., 2021).
A seleção, particularmente nos cursos de maior procura, é muito grande, de tal modo que tanto entre cotistas quanto entre não-cotistas a qualidade individual do estudante é garantida. Além disso, o cotista, percebendo que ganhou uma oportunidade que de outra forma lhe seria negada, frequentemente se esforça mais para superar as dificuldades e obter bons resultados acadêmicos.
Numa sociedade altamente desigual e injusta como a brasileira, também existem brancos pobres que carecem de políticas sociais que lhes garantam vida digna e igualdade de oportunidades com os demais. Nesse caso, contudo, o desafio é ter mais e melhores ações afirmativas, para que esses também possam ser contemplados. Numa sociedade mais inclusiva e justa, todos saem ganhando – só os corruptos e os aproveitadores perdem.