Racismo e direitos humanos

Lucineia Rosa dos Santos*

Luciney Martins/O SÃO PAULO

Em nosso País, o racismo que se alimentou da escravidão de irmãos africanos deixa marcas na estrutura social, vergonhosamente uma das mais desiguais do mundo na atualidade: “Os dados de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) sobre a realidade brasileira, da qual 53% da população é formada por negros e negras, mostram que 70% da população que vive em situação de extrema pobreza é negra”; e, a “chance de um negro ser analfabeto é 5 vezes maior do que um branco. Eles representam 68% dos analfabetos do País segundo o IBGE. Somente 1 pessoa a cada 4 com ensino superior é negra. A cada 12 minutos, 1 pessoa negra é assassinada no Brasil; 75% da população carcerária no Brasil é de pessoas negras”. Esses elementos de realidade foram lembrados pelo Arcebispo de Feira de Santana (BA), Referencial da Pastoral Afro-Brasileira, Dom Zanoni Demettino Castro, em 20 de novembro de 2018: “Os(as) negros(as) sofrem as consequências desta realidade porque os 300 anos de escravidão, que marcaram profundamente a história brasileira ainda não foram suficientemente reparados”, disse, por ocasião das celebrações da morte de Zumbi dos Palmares, último líder do Quilombo dos Palmares, o maior quilombo do período colonial – data celebrada há mais de 30 anos por ativistas do movimento negro, oficializada pela Lei 12.519, de 2011.

Racismo o que é no mundo, na América Latina e no Brasil? Há racismo no Brasil? Essa discussão sobre cotas não nos levará a ter os mesmos problemas que os Estados Unidos da América (EUA) têm hoje. Vidas negras importam! E as outras vidas, brancas, pardas, amarelas. Qual a razão deste alarde todo sobre as vidas negras, pessoas negras, irmãos, imagem e semelhança de Deus, cuja cor da pele é negra!

Racismo, ainda hoje, apresenta-se como um pecado, um vírus como disse o Papa Francisco: “Não podemos tolerar nem fechar os olhos diante de qualquer tipo de racismo ou de exclusão, e devemos defender a sacralidade de cada vida humana. Ao mesmo tempo, devemos reconhecer que a violência das últimas noites é autodestrutiva e autolesiva. Nada se ganha com a violência e muito se perde. Hoje, uno-me à Igreja de Saint Paul e Minneapolis, bem como de todos os Estados Unidos, para rezar pelo descanso da alma de George Floyd e por todos os outros que perderam a vida devido ao pecado do racismo.” (Audiência de 3 de junho de 2020).

O racismo é resiliente e exige atenção, vigilância e reação permanente. Lembremos aquilo que escreveu o Papa Francisco em seu perfil do Twitter, por ocasião da celebração do Dia Internacional para a Eliminação da Discriminação Racial (21 de março de 2021): “O racismo é um vírus que se transforma facilmente e, em vez de desaparecer, se esconde, mas está sempre à espreita. As manifestações de racismo renovam em nós a vergonha, demonstrando que os progressos da sociedade não estão assegurados de uma vez por todas”. A vacina para este vírus é a cultura da igualdade e da paz.

Não por acaso, a Assembleia Geral da ONU proclamou o período entre 2015 e 2024 como a Década Internacional de Afrodescendentes. Assim, a comunidade internacional reconheceu que os povos afrodescendentes representam um grupo distinto, cujos direitos humanos precisam ser promovidos e protegidos, “seja como descendentes das vítimas do tráfico transatlântico de escravos, seja, mais recentemente, como migrantes, estas pessoas constituem alguns dos grupos mais pobres e marginalizados da sociedade. Estudos demonstram que pessoas afrodescendentes têm acesso limitado à educação de qualidade, serviços de saúde, moradia e segurança. Podem ainda sofrer múltiplas formas de discriminação baseadas em outros critérios relacionados à idade, sexo, idioma, religião, opinião política, classe social, origem ou outros”, como afirma a representação no Brasil do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR). Na prática, no Brasil, isso implica em:

Não por ideologia, mas por necessidade de realização da justiça, a Lei institui as cotas raciais, na educação (Lei 12.711/2012) e no serviço público federal (Lei 12.9990/2014).

Na decisão, no caso, Acórdão, do STF sobre a constitucionalidade da Lei 12.711/2012 (ADPF 186 / DF) se confirma que essa ação afirmativa reforça a ideia de igualdade: “Não contraria – ao contrário, prestigia – o princípio da igualdade material, previsto no caput do Art. 5° da Carta da República, a possibilidade de o Estado lançar mão, seja de políticas de cunho universalista, que abrangem um número indeterminado de indivíduos, mediante ações de natureza estrutural, seja de ações afirmativas, que atingem grupos sociais determinados, de maneira pontual, atribuindo a estes certas vantagens, por um tempo limitado, de modo a permitir-lhes a superação de desigualdades decorrentes de situações históricas particulares.”

No embate pelo acesso aos empregos públicos, Lei 12.990/2014, a Ação Declaratória de Constitucionalidade 41 Distrito Federal (ADC 41/ DF), com emblemático Acórdão que indica a postura da Suprema Corte Brasileira no caminho da meta pelos Direitos Humanos e igualdade material, destaca-se o princípio da eficiência, segundo fundamento da decisão, logo após a isonomia e antes da proporcionalidade: “incorporação do fator ‘raça’ como critério de seleção, ao invés de afetar o princípio da eficiência, contribui para sua realização em maior extensão, criando uma ‘burocracia representativa’, capaz de garantir que os pontos de vista e interesses de toda a população sejam considerados na tomada de decisões estatais.”

Atualmente, entre nós, continua o debate sobre a “Revisão da Lei de Cotas na Educação”, por força de regra da própria lei, mas isso não significa extingui-la ou reduzi-la a pó. Caso a revisão legislativa represente retrocesso, isso deve ser enfrentado no futuro, conforme decisão recente da ministra do STF, Rosa Weber (ADI 7184 / DF). Deve-se agregar a garantia de que não poderá haver retrocesso a recente incorporação pelo Brasil, com status de Emenda Constitucional, da Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, firmado pela República Federativa do Brasil, na Guatemala, em 5 de junho de 2013 (Decreto no 10.932, de 10.1.2022). A Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial, que foi aberta à assinatura em Nova York e assinada pelo Brasil em 7 de março de 1966, no Brasil, foi incorporada em 1969 (Decreto no 65.810, de 8.12.1969), hoje é considerada uma norma que paira entre a Constituição e as demais Leis Nacionais.

*Os autores, ambos negros, são professores doutores de Direitos Humanos da PUC São Paulo.

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