Com a Rerum Novarum, Leão XIII não só estabeleceu uma nova fase no pensamento social católico, mas também antecipou as melhores soluções para os problemas sociais do século XX

Fonte: Wikimedia Commons
Publicada em 1891 pelo Papa Leão XIII, a Rerum Novarum (RN) tornou-se um marco no pensamento social católico moderno, refletindo o debate sobre o impacto da revolução industrial nas condições de vida dos trabalhadores. O próprio Leão XIII, em 1877, quando ainda era Arcebispo de Perugia, já havia se pronunciado criticamente sobre as condições de trabalho de homens, mulheres e crianças. Em outros países europeus, cardeais como o inglês Henry Manning (1808–1892), o francês Maurice de Bonald (1787-1870) e o alemão Wilhelm E. von Ketteler (1811–1877) também criticavam o tratamento desumano recebido pelos trabalhadores.
No plano político, esse era o momento em que liberalismo e socialismo, duas correntes ideológicas críticas à Igreja, ganhavam força no debate social e, no caso do socialismo, também no nascente movimento organizado em defesa dos direitos dos trabalhadores. O Papa Leão XIII tinha, portanto, o desafio de oferecer uma resposta tanto ao contexto social conflitivo quanto ao panorama ideológico particularmente hostil ao Cristianismo.
Desde o início, uma síntese integral. No debate católico, já era possível visualizar dois grupos: aqueles alinhados ao pensamento conservador da época, ligados à Escola de Angers (França), e os reformadores sociais da Escola de Liege (Bélgica). Ambos eram críticos tanto ao liberalismo quanto ao socialismo da época, mas diferiam em suas abordagens. Os de Angers tinham uma posição antagônica ao liberalismo político e defendiam uma ação social mais centrada no exercício da caridade e nas organizações sociais, com intervenção limitada do Estado na proteção dos direitos dos trabalhadores. Os de Liege estavam mais abertos às reformas políticas liberais e reconheciam a necessidade de uma intervenção do Estado para a proteção dos mais vulneráveis, apoiando um conjunto de medidas que no futuro seriam o alicerce do Estado de Bem-estar Social.
Neste contexto, a Rerum Novarum insistiu na necessidade da “justiça e da equidade” (RN 1) e de que “a justiça seja religiosamente graduada, e que nunca uma classe possa oprimir impunemente a outra” (RN 20). Considera que o Estado deve garantir a justiça nas relações sociais e defender os mais vulneráveis (RN 17-20), porém não lhe cabe sobrepor-se às associações e organizações da sociedade (RN 31). A melhor e mais definitiva solução para os conflitos sociais, segundo a conclusão do documento, encontra-se na caridade (RN 35). Assim, Leão XIII concordou com o grupo de reformadores sociais, sem negar os valores defendidos pelos conservadores.
No campo ideológico, a encíclica se voltou principalmente contra o socialismo e o comunismo, considerando que instigam o conflito social e apresentam uma solução (a propriedade estatal dos bens) que não construirá o bem comum (RN 3 e 7). Contudo, condenou claramente um capitalismo selvagem, que não demonstra nenhm apreço à pessoa humana, tratando-a como outra mercadoria qualquer (cf. RN 2). Leão XIII considera que “a propriedade particular e pessoal é, para o homem, um direito natural” (RN 5) e que o socialismo, ao defender que seja suprimida, “está em oposição fragrante com a justiça” (Idem). Contudo, citando São Tomás de Aquino, considera que “o homem não deve ter as coisas exteriores por particulares, mas sim por comuns, de tal sorte que facilmente dê parte delas aos outros nas suas necessidades” (RN 12). Assim, enunciava já o princípio de que a propriedade é um direito, mas que não pode contrapor-se ao bem comum, como explicitado, décadas depois, pelo Concilio Vaticano II e por São João Paulo II (cf. Compêndio da Doutrina Social da Igreja, CDSI 176ss).
Mesmo sem vincular a doutrina católica a nenhuma corrente de pensamento em particular, Leão XIII deixou a porta aberta ao que hoje é chamado de liberalismo social, opondo-se tanto ao Laissez-faire quanto à luta de classes e à socialização dos meios de produção como solução aos problemas criados pela revolução industrial.
Caráter Profético e Lições Contemporâneas. A proposta apresentada na Rerum Novarum se fundamenta em uma visão orgânica da sociedade, em que trabalhadores e patrões devem cooperar buscando uma solução para os conflitos existentes nas relações de trabalho que seja benéfica a ambos. Para alcançar este objetivo, reconhece a legitimidade das organizações em defesa dos trabalhadores e enfatiza a importância de negociações para evitar greves. O respeito à pessoa dos trabalhadores, expresso em condições de trabalho dignas e salários justos, é o melhor antídoto às greves – ainda vistas com cautela, em razão do risco de violência devido ao discurso socialista de luta de classes.
O impacto da encíclica não foi pequeno e pode ser verificado até mesmo nos Estados Unidos, por meio do trabalho incansável do Monsenhor John A. Ryan (1869–1945), teólogo que teve papel importante na aprovação da legislação de combate ao trabalho infantil, salário-mínimo e defesa da negociação coletiva entre trabalhadores e patrões. Estas e outras medidas foram importantes e eficazes na construção de uma sociedade mais justa, moldada aos contornos do liberalismo clássico da cultura política e social norte-americana.
Na Europa, seu impacto foi ainda maior, seja no modelo social-democrata dos países nórdicos, seja na combinação de ordoliberalismo e social-democracia, responsável pela reconstrução da economia alemã após a Segunda Grande Guerra. O elemento comum entre esses modelos é a solução negociada do conflito entre capital e trabalho, e a forte proteção social.
O caráter profético da Rerum Novarum é ainda mais evidente quando se compara a performance econômica e social desses países com a experiência do chamado socialismo real do Leste europeu. No primeiro, houve forte crescimento na oferta de empregos, renda e incorporação da grande maioria da população ao mercado consumidor, além da queda na desigualdade de renda. As reformas pontuais do modelo nos anos 1990, com a incorporação de elementos do modelo anglo-americano, não alteraram sua essência: a centralidade do bem-estar da população.
Já o modelo comunista, que obteve sucesso na fase inicial com a redução de pobreza e desigualdade, foi incapaz de manter seu dinamismo com o passar dos anos e acabou entrando em colapso, deixando como legado um enorme custo social e ambiental. A excelente performance econômica e social da China pós-reformas econômicas amigáveis ao mercado confirmam o fracasso do experimento socialista.
Desafios Futuros. Pensada como resposta a problemas de um momento histórico específico, a Rerum Novarum tornou-se ponto de partida para outras encíclicas sociais que, no geral, mostraram-se bastante acuradas nos diagnósticos e sugestões dos problemas por elas analisados. O desafio atual é fazer o mesmo exercício em relação aos problemas contemporâneos, principalmente os que estão por vir em razão das profundas mudanças no mundo do trabalho prometidas pela Inteligência Artificial. O pacto tripartite entre Estado, capital e trabalho, respeitando os direitos e a dignidade deste último, parece ainda ser a melhor alternativa, haja vista os bons resultados apresentados no passado.