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Superando divisões para criar uma internet segura aos jovens

Nesta era dos algoritmos e polarizações, o PL 2628/2022 surge como um marco histórico, estabelecendo que a proteção infantil não é pauta ideológica, mas consenso social. Com a exposição precoce à pornografia e violência extrema aumentando entre jovens, esta lei propõe mecanismos reais de controle, garantindo que famílias exerçam sua autoridade com respaldo legal, enquanto responsabiliza plataformas digitais. Além da legislação, o diálogo, o afeto e práticas concretas no ambiente doméstico são essenciais para proteger a infância neste mundo digital sem barreiras. Este texto revela como a construção desse consenso é possível mesmo no atual clima de polarização e por que a proteção das novas gerações deve ser prioridade máxima de toda a sociedade.

Direct_Media / Freerange Stock

Unir a direita e a esquerda no Brasil nunca foi uma tarefa fácil. Nos tempos que correm – a era dos algoritmos, dos influenciadores e dos lucros exorbitantes de grandes empresas em cima de tudo o que nos afasta – está mais complicado ainda. Parece que as pessoas estão se comportando como membros de tribos rivais, que se odeiam mortalmente. Eis um dos elementos que muito nos orgulha na aprovação do projeto de lei 2628/2022, que acaba de ser aprovado pelo Congresso Nacional e aguarda sanção presidencial: a construção de um consenso, um acordo acima de divisões ideológicas, em um assunto de tamanha urgência quanto à proteção de crianças e adolescentes na internet.

Diferentemente da televisão, que há décadas conta com classificação indicativa e restrição de horários para exibição de programas adultos, a internet continua sendo um território praticamente sem barreiras: bastam poucos cliques para que meninos e meninas sejam apresentados a pornografia, cenas de violência extrema e outros conteúdos impróprios e até mesmo criminosos, mesmo que não os procurem deliberadamente. A pornografia, em especial, já faz parte do cotidiano de adolescentes brasileiros: pesquisas recentes indicam que 40% dos jovens de 11 a 17 anos consomem conteúdo explícito regularmente – conteúdo este que, segundo pesquisa, é em sua vasta maioria composto de cenas de abuso e violência contra a mulher. Mais: um em cada cinco adolescentes entre 13 e 17 anos declara-se viciado em pornografia, e a idade média do primeiro contato é de apenas 11 anos, havendo casos de meninos que começam ainda mais cedo, por volta dos 8.

Um tema polêmico. O acesso precoce à pornografia está associado a maior risco de depressão e ansiedade, além, é claro, da normalização da violência sexual: meninos crescem acreditando que o que é visto nesses meios é natural e esperado, e meninas que precisam sexualizar sua aparência e comportamento para serem aceitas. Imaginar que pais e mães podem enfrentar sozinhos esta realidade é ilusório. Uma criança, afinal, está tão protegida quanto o colega de escola com as menores barreiras, e não é difícil imaginar o porquê: um menino pode ter filtros instalados em casa e regras claras de uso, mas ainda assim poderá ser exposto à pornografia ou às apostas pelo celular de um amigo de escola. Ninguém questiona a importância de classificação etária em espetáculos, afinal todos concordamos haver ocasiões e locais impróprios para crianças. É por isso que defendemos a aplicação dessas mesmas regras no ambiente digital, afinal de contas, o cuidado e a proteção das crianças é responsabilidade da família em primeiro lugar, mas também do Estado e da sociedade, inclusive das empresas. 

Esse é o cenário que levou o Family Talks a arregaçar as mangas e atuar na promoção de medidas concretas de proteção digital. Nossa atuação concentrou-se em incluir no projeto a obrigatoriedade de mecanismos de verificação etária em sites de pornografia, apostas, venda de bebidas e outros conteúdos já proibidos para menores, recomendação que foi incorporada ao texto aprovado pelo Congresso. Importa esclarecer que o texto aprovado não nasceu agora, nem é criação de um governo específico: trata-se de uma construção amadurecida desde 2023, debatida com a sociedade civil e aperfeiçoada em diferentes momentos políticos. Ao longo dos últimos dois anos, participamos de audiências públicas, apresentamos dados sobre os impactos da pornografia e insistimos em padrões compatíveis com o que já existe em outros países, tais como França e Inglaterra. Quando o documentário “Adultização”, do youtuber Felca, acendeu o alerta da opinião pública, já estávamos preparados para dialogar com parlamentares de diferentes espectros ideológicos, e foi nesse ambiente que conseguimos ajudar a consolidar um texto consensual, focado exclusivamente em problemas bem definidos.

A família e o Estado. Com frequência, esbarramos no receio de que o projeto possa retirar a autoridade da família, transferindo-a ao Estado, e estamos seguros de que o projeto enseja justamente o contrário: o texto aprovado estabelece que plataformas digitais criem condições para que os pais exerçam sua autoridade com respaldo legal, incorporando as responsabilidades que qualquer empresa precisa ter para proteger as crianças. Não há qualquer menção a restrições de liberdade de expressão, tampouco definições sobre o que pode ou não ser dito nas redes sociais. Há, sim, indicações mais específicas para combater crimes cibernéticos cometidos contra crianças, sem ambiguidades: o texto da lei detalha o que seria conteúdo criminoso e o que fazer com ele, evitando o risco de uso “criativo” da lei pelo Poder Judiciário. No mais, nosso objetivo é simples e direto: impedir que pornografia explícita, violência extrema e jogos de azar continuem disponíveis, sem barreira alguma, ao alcance de crianças. Longe de enfraquecer as famílias, a lei as respalda.

Indo além da lei. É preciso lembrar, contudo, que a lei não basta por si só. Pais e mães devem adotar práticas concretas de proteção em casa. Algumas medidas simples já fazem uma enorme diferença. Estabelecer que a internet seja usada apenas em ambientes de convivência comum, nunca dentro dos quartos, é uma barreira poderosa contra riscos, desde o acesso a conteúdos impróprios a conversas com estranhos em redes sociais. Deve-se também limitar o tamanho dos pacotes de dados oferecidos às crianças, evitando que naveguem sem supervisão de qualquer lugar. Instalar filtros de DNS no roteador doméstico, bloqueando sites impróprios, é outra ferramenta acessível e eficaz, além, é claro, do controle do tempo de uso de telas. Adiar ao máximo a entrega de smartphones, preferencialmente apenas a partir dos 14 anos, é outra recomendação prática – muito repetida pelo psicólogo Jonathan Haidt, autor do best-seller “A geração ansiosa”. Acima de tudo, é preciso dar o exemplo: todas as regras devem valer para todos os membros da família. Se os adultos passam horas diante das telas, encarando um celular durante as refeições ou antes de dormir, dificilmente conseguirão imporlimites coerentes aos filhos. Naturalmente, tudo isso só funciona quando acompanhado de presença e afeto: nenhuma autoridade parental se sustenta sem diálogo constante, atenção e engajamento real com a vida dos filhos – na era digital, não será diferente. Não basta que a lei obrigue as plataformas a criar mecanismos de proteção se os pais não souberem usá-los ou se não cultivarem em casa um ambiente de confiança.

O PL 2628/2022 representa, portanto, uma vitória histórica não de um grupo político ou de uma organização, mas das famílias brasileiras. Mostra que é possível construir consensos em torno de causas urgentes, mesmo em tempos de polarização. A aprovação da lei, porém, é apenas um começo. A luta por ambientes digitais mais seguros exige mobilização permanente, fiscalização das empresas de tecnologia e valorização contínua do papel da família como núcleo primário e insubstituível de proteção. Proteger crianças e adolescentes na internet não é pauta de direita nem de esquerda, mas missão de toda a sociedade para garantir um ambiente digital propício ao desenvolvimento de todas as pessoas.

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