Estamos vivendo tempos nunca vistos. Um tsunâmi na saúde e outro na economia, o que tem gerado muitas discussões e análises. Alguns chegam a tentar comparar o valor de uma vida ao preço de uma máquina. Como se isso fosse possível!
O fato é que, do ponto de vista econômico, a pandemia gerou um grande volume de análises e de previsões sobre o que nos espera quando sairmos da crise atual. Algumas dessas estimativas são óbvias porque o tempo perdido na economia não volta mais. Assim, a recessão, o desemprego, o aumento da fome são consequências já reais. Crises econômicas usualmente acontecem, como queda de elevador, mas subida de escada é bem difícil, com degraus altos e que exigirão muito esforço. Este comentário já tive a oportunidade de traçar em recente artigo no “Estadão”.
Muito fortes estão as discussões sobre se a situação representa o fim do neoliberalismo e se vamos nos voltar para um campo com forte presença do Estado. Temos, no entanto, um grau de incerteza nunca visto. Assim, admitir “certezas” é desconsiderar a realidade.
Nessas tentativas de prever o que nos espera e qual o modelo econômico que irá prevalecer, não estamos encontrando análises que considerem a visão social da Igreja Católica. No entanto, existe na Igreja uma tradição de emissão de cartas de cunho social, como podemos encontrar no Evangelho e nos textos de São João Crisóstomo. E, a partir de Leão XIII, em 1891, foi iniciada a produção de forma mais sistemática de cartas sociais. Dessa forma, a Igreja nos propõe um modelo que se preocupa com o desenvolvimento humano, sem deixar de considerar a economia e sua importância na vida das pessoas. Particularmente, a encíclica do Papa Emérito Bento XVI Caritas in veritate (CV) é toda dedicada a essa temática.
A carta de Bento XVI traz princípios de reflexão: os critérios de juízo da Doutrina Social da Igreja e uma visão mais geral da economia, de sua finalidade e da responsabilidade de seus atores. Não cabe aqui trazer uma discussão detalhada de toda a encíclica, mas vale ao menos a citação de um parágrafo: “A crise nos força a rever nosso caminho, a dar-nos novas regras e a encontrar formas novas de compromisso, a valorizar as experiências positivas e a rejeitar as negativas. A crise se torna ocasião de discernimento e de nova planificação. Nesta chave de leitura, confiante e não resignada, devem-se enfrentar as dificuldades do momento presente” (CV, 21).
Sobre o momento em que vivemos, encontramos mais paralelos em filmes de Hollywood, com ruas vazias, o medo geral, o pânico à porta. Por outro lado, muitos estão percebendo situações que não eram vistas anteriormente. Começamos a enxergar as pessoas em situação de rua, que antes não eram notadas. As pessoas não viam esses seres humanos, não notavam que eles sempre estiveram lá. Passamos a entender a importância de algumas profissões e dar valor para situações que não eram percebidas. Ficou escancarado que milhões de pessoas não têm segurança social alguma. Dependem do trabalho diário para poder comer.
Recorrendo novamente à Caritas in veritate, lá encontramos que a ciência econômica nos diz que “a situação estrutural de insegurança gera comportamentos antiprodutivos e de desperdício de recursos humanos.” E mais, “os custos humanos são sempre também custos econômicos, e as disfunções econômicas acarretam sempre também custos humanos” (CV, 32).
Tudo que estamos vivendo vai nos levar a repensar nosso modo de vida. Tudo será diferente. Vamos ter que ressignificar muitas coisas de nossa sociedade e nas nossas relações nesse “novo” normal. Portanto, ter “certezas” do que nos espera no futuro é leviano.