A palavra ‘estrangeiro’ na encíclica Fratelli tutti

A palavra estrangeiro aparece 16 vezes na encíclica Fratelli tutti (FT) do Papa Francisco, assumindo cinco sentidos distintos. Para cada um deles são oferecidos princípios da Doutrina Social da Igreja que ajudam a fazer uma leitura da realidade com alguma isenção dos vieses ideológicos com os quais estamos acostumados.

Francisco se utiliza ainda de trechos da Sagrada Escritura para indicar que as questões sociais envolvendo estrangeiros estiveram presentes na história do povo de Israel e na vida dos primeiros cristãos. A palavra estrangeiro surge nos quatro primeiros capítulos, de um total de oito capítulos que estruturam o documento e, como já dito, assume cinco significados, a saber: 

  1. Estrangeiro como capital financeiro, que é aplicado em diversos países buscando uma maior rentabilidade para os investidores que procuram mercados nos quais seja fácil penetrar, com o mínimo de burocracia e de impostos, de modo que sua circulação se dê globalmente com grande rapidez (Capítulo I);
  2. Estrangeiro como aquela pessoa, ou grupo, que vem habitar o nosso país e que deveria ser acolhido e respeitado na sua dignidade (Capítulo II);
  3. Estrangeiro como aquele que mora em nosso país (é um conterrâneo), possui cidadania e documento de identidade, porém é tratado como estrangeiro devido ao racismo e outras formas de exclusão social (Capítulo III);
  4. Estrangeiro como um povo (ou país) que não tem acesso aos bens de outra nação que pode ser mais rica em termos econômicos ou ecológicos, e uma tal privação fere o princípio da destinação universal dos bens e da função social da propriedade (Capítulo III);
  5. Estrangeiro como aquela pessoa, ou profissional, que deveria ser acolhido em outro país segundo o critério da gratuidade e não por interesse econômico ou por uma motivação utilitarista da força de trabalho (Capítulo IV).

Cada um desses aspectos poderia merecer uma análise específica. Para ficarmos no primeiro aspecto (o capital estrangeiro), é interessante notar que o tema se insere no capítulo que trata das “sombras de um mundo fechado”, na parte que se refere aos “sonhos desfeitos em pedaços”.

A esse respeito, o Papa diz: “‘Abrir-se ao mundo’ é uma expressão de que, hoje, se apropriaram a economia e as finanças. Refere-se exclusivamente à abertura aos interesses estrangeiros ou à liberdade dos poderes econômicos para investir sem entraves nem complicações em todos os países. Os conflitos locais e o desinteresse pelo bem comum são instrumentalizados pela economia global para impor um modelo cultural único” (FT, 12).

Trata-se de um dos pontos mais delicados da encíclica, pois a economia global, nos modos como tem funcionado nas últimas décadas, tem agravado as situações de injustiça entre países e a exclusão social. Lamentavelmente, os atores econômicos se aproveitam dos conflitos locais para se impor com sua indiscutível força e inteligência. 

Dito de outra forma, as divisões internas dos países favorecem a entrada do capital estrangeiro. Um reino dividido se curva mais facilmente. De fato, os sistemas políticos injustos e corruptos das nações em desenvolvimento se abrem e se beneficiam do capital estrangeiro.

A arquitetura do poder econômico global é complexa e, para ser bem compreendida, exige a expertise não apenas de economistas, mas também de cientistas políticos, diplomatas, juristas etc. Especialistas em Doutrina Social da Igreja e em disciplinas como a Antropologia e a Psicologia poderão colaborar na análise sobre essas questões levantadas pela encíclica que tocam diretamente a missão da Igreja.


José Mario Brasiliense Carneiro é diretor-presidente da Oficina Municipal, uma escola de Cidadania e Gestão Pública. Advogado, tem mestrado e doutorado em Administração Pública pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) e pós-graduação em Teologia pela Pontifícia Universidade Lateranense, em Roma. É membro da Comunidade Emanuel e de seu Conselho Internacional.

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