Polarização, radicalismo ideológico, extremismo de parte a parte. Quem acompanha com atenção o debate público dos últimos anos não ouve falar de outra coisa. Trata-se de um fenômeno brasileiro, mas também internacional – uma marca típica do nosso tempo. Poucos notam, contudo, como a “guerra cultural” já ultrapassou de longe as esferas eleitorais e partidárias e o quanto ela vem penetrando no seio da própria Igreja.
Uma das raras vozes que se levantam e põem o dedo na ferida é a do Frei Raniero Cantalamessa. “A fraternidade católica está dilacerada!”, afirmou o pregador da Casa Pontifícia em 2021, no seu costumeiro sermão da Sexta-feira Santa. “Qual é a causa mais comum das divisões entre os católicos? Não é o dogma, não são os sacramentos e os ministérios. É a opção política, quando ela se sobrepõe à opção religiosa e eclesial e desposa uma ideologia, esquecendo completamente o sentido e o dever da obediência na Igreja. É este, em certas partes do mundo, o verdadeiro fator de divisão, ainda que tácito.”
No caso de nosso país, especificamente, o que percebemos, entre aqueles que se declaram cristãos católicos, é uma polarização forte entre dois grupos.
De um lado, a direita conservadora, muito inspirada, para não dizer moldada, pela direita dos Estados Unidos, assume de maneira bastante feroz as chamadas pautas cristãs de valores, ou de costumes, como a oposição à legalização do aborto, a defesa da família natural e crítica às teorias de gênero. Muito contaminados, porém, pelo liberalismo econômico, os conservadores tendem a ignorar fortemente toda a chamada questão social, como o combate à pobreza, a redução das desigualdades e a preservação do meio ambiente.
De outro lado, a esquerda progressista, que é intimamente ligada aos chamados movimentos identitários ou de minorias, enfatiza claramente a importância da questão social e da presença do Estado na economia, bem como denuncia, com muito acerto, as contradições que há entre os valores da fé cristã e a sociedade de consumo que temos hoje. Infelizmente, porém, quando se trata de questões morais de primeira ordem, como a defesa integral da vida e da família, não poucas vezes os cristãos de esquerda traem ou relativizam os ensinamentos da Igreja a respeito desse tema.
No fim das contas, o que falta a ambos os lados dessa triste disputa ideológica é uma verdadeira e completa fidelidade a Nosso Senhor. Via de regra, tanto conservadores quanto progressistas fazem uma apropriação parcial da Doutrina Social da Igreja (DSI), retirando dela apenas o que lhes convém. Nós, porém, precisamos trilhar outro caminho. O que é necessário é defender a DSI por inteiro – tanto nas questões de valores quanto nas questões materiais, tanto naquilo que diz respeito a princípios éticos quanto naquilo que diz respeito às oportunidades socioeconômicas.
Como ensinou o Papa Francisco em Gaudete et exsultate: “A defesa do inocente nascituro deve ser clara, firme e apaixonada, porque neste caso está em jogo a dignidade da vida humana, sempre sagrada, e exige-o o amor por toda a pessoa, independentemente do seu desenvolvimento. Mas igualmente sagrada é a vida dos pobres que já nasceram e se debatem na miséria, no abandono, na exclusão, no tráfico de pessoas, na eutanásia encoberta de doentes e idosos privados de cuidados, nas novas formas de escravatura, e em todas as formas de descarte”.