A quem interessa modificar uma lei que combate a corrupção?

Nos anos de 2008 e 2009, era cena comum na porta das paróquias e comunidades católicas em todo o Brasil ver mesas e cartazes para a coleta de assinaturas à campanha “Ficha Limpa”. Ao menos 1,3 milhão de assinaturas eram necessárias para apresentar ao Congresso Nacional um projeto de lei de iniciativa popular que impedisse a candidatura dos “fichas-suja”, ou seja, aqueles que já tivessem sido condenados por crimes por um órgão colegiado da Justiça ou renunciado a seus mandatos no Legislativo ou no Executivo para escapar de uma cassação. 

A campanha, articulada especialmente pelo Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE), recebeu apoio formal do episcopado brasileiro na 46ª Assembleia Geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em 2008. Em 24 de setembro do ano seguinte, o projeto de lei, contendo mais de 1,5 milhão de assinaturas – a ampla maioria coletada nas paróquias e comunidades católicas – foi entregue ao Congresso Nacional. Em maio de 2010, em votações na Câmara e no Senado, o projeto de lei foi aprovado, e, finalmente, em 4 de junho de 2010, sancionado pelo presidente Lula como a lei complementar 135/2010. 

Prestes a completar 15 anos, a Lei da Ficha Limpa está sob risco, devido à tramitação de quatro projetos de lei complementar (PLPs) para modificá-la: na Câmara Federal, o PLP 316/2016 – que altera casos de inelegibilidade em razão da aplicação desta Lei – e o PLP 141/2023 – que modifica o prazo de inelegibilidade de oito para dois anos às pessoas condenadas; já no Senado, estão em apreciação o PLP 112/2021 – do novo código eleitoral, com mudanças sobre a inelegibilidade dos “fichas-suja” – e o PLP 192/2023, que propõe recalcular quando começa a contar o período de oito anos em que um condenado fica inelegível. 

“As mudanças contidas nesses PLPs desfiguram os principais mecanismos de proteção da Lei da Ficha Limpa ao beneficiar especialmente aqueles condenados por crimes graves, cuja inelegibilidade poderá ser reduzida ou mesmo anulada antes do cumprimento total das penas. Além disso, as mudanças pretendidas isentam quem praticou os abusos de poder político e econômico, e enfraquecem o combate às práticas corruptas que comprometem a democracia brasileira”, manifestou-se a CNBB, por meio seu conselho permanente, em nota, no dia 18. 

Dos quatro projetos, o PLP 192/2023 está com a tramitação mais adiantada, já tendo sido aprovado pela Câmara em 2024 e agora sendo debatido no Senado. No texto, mantém-se o prazo de oito anos para a inelegibilidade de condenados por um colegiado em alguns crimes comuns, e daqueles que sejam cassados ou que renunciem ao mandato para evitar punições, mas se altera o momento de quando começa a contar a punição: atualmente, a contagem dos oito anos se inicia apenas após o cumprimento da pena ou do período restante do mandato. Com a mudança, o cálculo passaria a valer desde o começo da condenação. Atualmente, por exemplo, se alguém é condenado a seis anos de prisão, somente poderá se candidatar daqui a 14 anos (seis da condenação + oito da ineligibilidade). Se o referido PL for aprovado, estes seis anos seriam diluídos nos oito anos em que vigora a ineligibilidade. 

Como destaca a CNBB, a Lei da Ficha Limpa “é uma das mais importantes conquistas democráticas da sociedade brasileira, um patrimônio do povo e uma importante conquista da ética na política”, além de “um marco na luta contra a corrupção”. Assim, qualquer alteração que nela se faça deve resultar de um intenso processo de diálogo com a sociedade. Entretanto, como ressaltam os bispos “o PLP 192/2023 está na pauta do plenário do Senado neste período, sem um debate necessário com a sociedade”. Por essa razão, escrevem na conclusão da nota: “Apelamos à consciência dos parlamentares e convocamos toda a sociedade a lutar contra qualquer alteração na Lei da Ficha Limpa que possa destruir a democracia, conquista de todos e do bem comum”. 

O Compêndio da Doutrina Social da Igreja aponta que “entre as deformações do sistema democrático, a corrupção política é uma das mais graves porque trai, ao mesmo tempo, os princípios da moral e as normas da justiça social; compromete o correto funcionamento do Estado, influindo negativamente na relação entre governantes e governados; introduzindo uma crescente desconfiança em relação à política e aos seus representantes, com o consequente enfraquecimento das instituições” (CDSI 411). Aos parlamentares, portanto, resta a pergunta: a quem interessa modificar uma lei que combate a corrupção? 

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