Pets não são filhos

por LUIZ EDUARDO PESCE DE ARRUDA

Nossa geração, lembra São João Paulo II, não carrega dentro de si as experiências da II Guerra Mundial, as lutas contra o totalitarismo e o comunismo. Vivemos, recorda, num clima de liberdade, conquistada para nós por gerações que nos antecederam, e cedemos sobremaneira à civilização do consumo. 

O consumo, propriamente, não é mau. Nossa geração vive mais tempo, com mais conforto e qualidade que as gerações passadas. Doenças que assolaram a humanidade por milênios estão controladas e sua cura se procede sem grande esforço. O acesso aos serviços médicos e odontológicos a que tem acesso nossa geração é incomparavelmente superior ao da geração de nossos pais e avós.

O acesso a alimentos com maior fartura e qualidade foi ampliado, pela chegada da tecnologia ao campo – embora o egoísmo e a corrupção ainda não tenham permitido vencer a fome que, cruel e vergonhosamente, ainda atinge amplos segmentos de populações socioeconomicamente vulneráveis em nossa cidade, no Brasil e no mundo.

Alimentos outrora restritos – “quando pobre come frango, um dos dois está doente”, dizia o Barão de Itararé – foram barateados e tornados acessíveis a faixas cada vez mais amplas da população.

O turismo permite que grandes contingentes de pessoas, inclusive idosos, vivenciem experiências deslumbrantes, outrora reservadas aos ricos, como cruzeiros de navio e viagens de avião. E a globalização facultou o acesso a produtos outrora raros, como manufaturados, alimentos e bebidas importados. 

O que preocupa, porém, é a patologia do consumo. É o consumismo, que impõe uma permanente angústia, que exige o acesso continuado a bens, uma lista que se renova e nunca se esgota e só permite ser feliz a quem possui bens materiais. É a prosperidade material que determina quem será respeitado, a ostentação é a regra e atinge em cheio a autoestima especialmente dos jovens. Valorizado é quem tem, e não quem é. E os bens não têm de ser conquistados de modo planejado. Tem de ser obtidos hoje, agora, a qualquer custo.

E se sua estrutura familiar é frágil, faltam-lhe modelos de conduta virtuosa nos quais se espelhar, sua base religiosa é claudicante, seu acesso à educação formal não lhe traz esperança de acessar bons empregos e, por consequência, os bens que ambiciona, está completo o coquetel que seduz os jovens em situação de vulnerabilidade e risco social a assumir o risco de envolver-se com o crime, onde as drogas despontam com indesejável frequência.

E um dos subprodutos do consumismo é a “trash culture”, a cultura do lixo. Tudo é efêmero, tudo é descartável. Inclusive as pessoas. 

Assim, os idosos são abandonados, relegados à solidão, as relações pessoais são superficiais e efêmeras, as amizades se contam aos milhares pelos likes em redes sociais, relações se iniciam e se extinguem por aplicativos e o amor, no sentido pleno e profundo, dá lugar a experiências rasas, de mera satisfação sexual imediata, que não preenchem o vazio da alma.

A busca do prazer, o hedonismo, o culto ao corpo, o desejo de viver experiências novas, com liberdade e a ambição do conforto material faz com que as pessoas adiem “sine die” ou abdiquem da maternidade ou da paternidade, pois ser pai ou ser mãe tira a liberdade, traz preocupações e riscos que podem ser evitados simplesmente pela renúncia à geração de uma nova vida.

Gerar e educar filhos – atos indissociáveis, como têm insistido sucessivos papas, tema ao qual o Papa Francisco voltou nesta sua primeira audiência pública do ano de 2022– torna-se um calvário, que rouba a forma do corpo, exige investimentos de monta e interrompe o idílio falso de uma eterna juventude. E traz preocupação, e preocupações devem ser evitadas, pois é preciso viver com alegria, intensidade e sem preocupações, como se a vida física na Terra fosse eterna. 

Esses fatos talvez possam explicar em parte o fenômeno da humanização dos animais.

Animais domésticos são criaturas de Deus, companheiros da humanidade em sua marcha civilizatória. Mesmo Jesus, em diversas passagens do Novo Testamento, se refere a eles com carinho. São Francisco os chamou de irmãos.

A presença desses pets nos lares, quando observados os limites da higiene e do bom senso, é benéfica, traz alegria e coopera na educação dos filhos, ao ensinar as crianças a cuidar com responsabilidade de seres frágeis e indefesos, com os quais intercambia carinho, de maneira leal e desinteressada. Adultos e idosos encontram nos animais domésticos uma fonte e um destino de afeto. Pacientes têm sua cura abreviada e sua dor minimizada pela presença de animais no tratamento. E eles se mostram insubstituíveis como guias de pessoas com deficiência visual, em atividades de guarda e vigilância, salvamento ou busca de pessoas, corpos ou produtos ilícitos.

Cães oferecem proteção e afeto, numa relação de mutualismo, aos recicladores, moradores e famílias em situação de rua.

O problema se manifesta quando a atenção aos animais assume um caráter de ostentação fútil, que possa estar mesmo associado a transtornos emocionais. Relegando a manifestação de sentimentos altruístas por pessoas, toda a afetividade é dirigida aos pets. Pets ganham cuidados que excedem qualquer limite razoável e são humanizados.

Animais recebem nomes humanos, cuidados outrora reservados a bebês e polpudos investimentos são destinados a esses animais, que as pessoas não hesitam em chamar de “filhos”, “filhinhos” ou “membros da família”. Sob o argumento de que a saúde emocional dos animais será abalada, as famílias deixam de viajar e de cumprir compromissos sociais (“– nosso filhinho não pode ficar sozinho”) e hotéis e restaurantes são frequentados à medida em que aceitam a presença de pets. Animais frequentam o mesmo ambiente que humanos, ao ponto de irem juntos à praia, dormirem em suas camas e se alimentarem em seus pratos.

Seus “aniversários” e “casamentos” são celebrados com festas, para as quais são convidados os “amiguinhos”. Cães são levados a spas e cabelereiros e manicures, ganham massagens, joias e roupas de grife de presente e, quando morrem, são “velados” e sepultados ou cremados. Crematórios anunciam que “seu amiguinho (ou “seu melhor amigo”) é cremado individualmente e suas cinzas são devolvidas em uma urna personalizada”. O custo desse processo varia de preço de acordo com as escolhas da “família do falecido”, sendo que até mesmo joias feitas com os pelos do bicho podem ser fabricadas se for do desejo do contratante, misturando uma mecha do pelo do pet na pedra preciosa que enfeita a peça – assegurando a perpetuidade da presença do “amiguinho” no seio familiar.

Como bem recorda Frei Vanildo Luiz Zugno OFM Cap, em seu artigo “São Francisco e os animais”, estima-se que hoje, no Brasil, haja em torno de 150 milhões de animais domésticos: 55 milhões de cães, 25 milhões de gatos, 25 milhões de peixes ornamentais, 40 milhões de aves ornamentais e 2,5 milhões de répteis e pequenos mamíferos, segundo o IBGE.

Toda esta população animal gera um mercado de aproximadamente 40 bilhões de reais. Em plena pandemia, o “mercado pet” foi um dos que mais cresceu no Brasil: 13,5% no ano de 2020. 

Segundo a FECOMÉRCIO-SP, no mercado mundial, o Brasil estava em terceiro lugar em faturamento, atrás apenas dos Estados Unidos e do Reino Unido.

Apenas para efeito de comparativo, o Bolsa Família, programa do governo federal destinado ao segmento mais vulnerável da população humana brasileira e que atende 15 milhões de pessoas, teve, em 2019, um orçamento de 30 bilhões de reais.

Neste orçamento, Frei Vanildo pontua, não estão incluídos os animais que acompanham as milhares e milhares de pessoas que, em todas as cidades do Brasil, desde as metrópoles até as pequenas interioranas, vivem na rua e se alimentam das sobras das comidas que já não são destinadas aos animais.

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São Francisco de Assis

São Francisco, o “Homem do Milênio”, querido e respeitado não apenas por católicos, mas por pessoas de boa vontade de todas as denominações religiosas ao redor do mundo, conhecido por seu amor pelos animais, explica, na Primeira Regra: “Ordeno a todos os meus irmãos que de modo algum criem qualquer animal, nem junto a si mesmos, nem com outra pessoa, nem de qualquer outra forma”. É uma das poucas ordens, segundo Frei Vanildo, que Francisco dá aos irmãos. Normalmente, ele pede ou aconselha. Aqui, ao se tratar de animais, ele ordena que os frades jamais os possuam.

Mas então, São Francisco não gostava dos animais? Ele os amava como criaturas de Deus, fato atestado em várias passagens das diversas biografias do santo. 

São Francisco ama os animais. Mas como seu amor é verdadeiro, pontua Frei Vanildo, não os quer submissos e a serviço do prazer dos seus “tutores”.

Ele quer os animais livres, vivendo em seu ambiente natural e sendo o que eles são e não instrumento para a satisfação das carências humanas. Quem escraviza animais pelo prazer que eles lhe proporcionam ou para suprir as próprias carências, não está vivendo o espírito de São Francisco, afirma Frei Vanildo.

Em sua primeira audiência geral de 2022, realizada no dia 05 de janeiro na sala Paulo VI, o Papa Francisco alertou exatamente para o fato de que os animais de estimação tomam, por vezes, o lugar dos filhos. 

O Papa também lamentou o chamado “inverno demográfico” e a queda nas taxas de natalidade de alguns países ocidentais.

Para o Papa Francisco, “Muitos casais não têm filhos porque não querem ou têm um só e chega, mas têm dois cachorros, dois gatos que tomam o lugar dos filhos”. A partir de sua indiscutível autoridade, Francisco nos admoesta paternalmente que essa é uma forma de egoísmo. 

“Ter um filho” – prosseguiu o Papa em outro trecho de sua fala – “é sempre um risco, porém, é mais arriscado não ter. Um homem e uma mulher que não desenvolvem o sentido da paternidade e maternidade, lhe falta algo de principal, importante”.

Rememorando a figura de São José, o pai preposto de Jesus, o papa relembrou que vivemos em um tempo de “orfandade notória”, no qual “não é suficiente pôr um filho no mundo para também dizer que somos pais ou mães”. 

“Não se nasce pai, se torna” – afirmou o papa – “E não se torna pai apenas porque se colocou no mundo um filho, mas porque se cuida responsavelmente dele. Sempre que alguém assume a responsabilidade pela vida de outra pessoa, em certo sentido exerce a paternidade a seu respeito”.

“A maternidade e a paternidade é a plenitude da vida de uma pessoa”, disse o Papa. Muitos casais, entretanto, não têm possibilidade de engravidar. Outros, sentem a necessidade de enriquecer o lar, já abençoado pela presença de filhos biológicos, com a presença de mais crianças.

capa papa francisco natalidade scaled
Vatican Media

A tentativa de engravidar sem sucesso é um dos limites mais extremos a que se pode submeter a relação de um casal. que deseja vivenciar a maternidade e a paternidade. Tensões, acusações mútuas, podem levar ao fim do relacionamento, especialmente quando um deseja ter filhos e o outro não, discussão que por vezes foi adiada antes do matrimônio e que aflora, com força e crueldade, em algum momento da vida do casal.

Muitas vezes, o casal, em desespero, se questiona:

– Será que Deus está nos punindo por alguma falta que nós tenhamos cometido? Ou nossos pais? Ou nossos avós?

O casal, então não hesita em contrair dívidas acima de suas posses, em busca de tratamento de fertilidade, quando esperanças lhe são alimentadas, por vezes a peso de ouro. Ou o casal se inscreve em programas públicos de fertilização, onde todos os demais compromissos – familiares e profissionais – passam a subordinar-se à hora da consulta.

A riqueza e espontaneidade do convívio é substituída pela necessidade mecânica de, em dia e hora certos, ter de manter relações sexuais, na expectativa de conseguir a desejada fertilização.

E, muitas vezes, esse processo se releva infrutífero. 

Da frustração vem a luz. Normalmente um dos cônjuges desperta primeiro para a via da adoção. Mas há um caminho a ser percorrido. Se o cônjuge aceita o argumento, não é raro que os familiares interfiram, alertando para o risco de introduzir alguém “que não é de nosso sangue” na comunhão familiar.

Crianças em situação de adoção vêm de histórias de vida trágicas, em que vulnerabilidade e risco iminente sempre estão presentes. Caso contrário, teriam permanecido em seu núcleo familiar original, na companhia de seus pais, avós ou familiares, e não recolhidos a uma instituição.

Será – pais que irão adotar poderão indagar-se – que uma criança não trará consigo os traumas e a hereditariedade de seus pais biológicos, traços perversos de personalidade, doenças não identificadas ou eventual compulsão por álcool ou drogas?

Há um momento, porém, em que o casal, disposto a enfrentar qualquer barreira social ou familiar, se decide corajosamente pela adoção. 

É a esses casais que o Papa Francisco, em sua audiência do dia 5, referiu-se amorosamente. A adoção não é fruto de uma relação sexual, por vezes casual, que leva à gravidez. É um processo amadurecido e uma opção consciente de um casal que se ama e está disposto a enfrentar qualquer desafio para impedir que uma criança seja institucionalizada, conferindo-lhe um lar, com oportunidades e amor.

Se adotar é um ato consciente de risco, ter um filho biológico também o é. Quantas famílias tradicionais conhecemos, cujos filhos deslizaram para uma vida de vícios ou práticas reprováveis?

Assim, ninguém pode afirmar com certeza o que se passará na vida de uma criança. Será que experiências vividas na adolescência ou na vida adulta, amigos ou namoradas (ou namorados) não os desviarão do reto caminho? Decididamente, não é possível saber. 

Essa insegurança deveria, portanto, impedir casais cristãos de conceberem – ou adotarem – filhos, substituindo-os por pets?

Evidentemente que não, pois pets não são filhos, e nem os substituem.

Temer conceber ou adotar, na insegurança dos dias que virão, seria negar nossa fé na misericórdia de Deus, no amor de Cristo pela humanidade e no caminho seguro pelo qual nos conduz o Espírito Santo.

Adotar legalmente uma criança, no Brasil, sem dúvida, é um processo que exige paciência e determinação. Mas temos que reconhecer que, nos últimos anos, os procedimentos legais necessários para “que se realize o sonho de tantos pequeninos que precisam de uma família, e de tantos cônjuges que desejam entregar-se com amor”, nas palavras do Santo Padre, foram .bastante simplificados na lei brasileira, tornando-se acessíveis a qualquer família que deseje, de coração, enriquecer a vida de uma criança, dando-lhe um lar, e, sobretudo, enriquecer a própria vida do casal, pela extraordinária experiência de amor, materializada pela adoção. 

E, ao decidir-se pela adoção, o casal dá uma imensa e positiva prova de fé, atirando-se de olhos fechados no colo amoroso do Pai, na certeza de que Ele os guiará e proverá.

O amor é a maior força presente no Universo. “porque Deus é amor”, diz São João em seu Evangelho. O amor, presente de Cristo à humanidade, é poderoso ao ponto de lavar o passado, renovar a vida, banir histórias pregressas, permitir um novo recomeço.

“Não tenham medo disso”, pontuou o Papa. “Rezo para que ninguém se sinta sem um vínculo de amor paterno. Que São José exerça a sua proteção e a sua ajuda sobre os órfãos; e que interceda pelos casais que desejam ter um filho”, concluiu.

Que Jesus, verdadeiro Deus e verdadeiro Homem, que também teve um pai adotivo modelar na pessoa de São José, nos inspire, nos guie e nos guarde, para nos decidirmos corajosamente pela maternidade e pela paternidade, sabedores de que a vida é um Dom de Deus e que Ele, em sua infinita sabedoria, reservou a cada família a possibilidade de vivenciar a plenitude do amor materno e paterno. Cabe a nós decidirmos.

Luiz Eduardo Pesce de Arruda é Coronel da Polícia Militar (veterano) e doutorando em História da Cultura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie de São Paulo

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