Se considerarmos isoladamente a cena da Conversão de São Paulo, talvez não compreendamos de início o motivo para haver uma festa litúrgica específica para comemorar este episódio. O jovem Saulo, fariseu discípulo de Gamaliel, instruído em todo o rigor da Lei e zeloso da causa de Deus (cf. At 22,3), viajava de Jerusalém a Damasco, com a missão de perseguir e prender cristãos – que, em sua visão, distorciam a verdadeira religião dos judeus. No meio do caminho, no entanto, ele se vê cercado por uma grande luz que vinha do céu, cai por terra e vê o Ressuscitado, que lhe censura: “Saulo, Saulo, por que me persegues? Eu sou Jesus, a quem tu estás perseguindo”. A partir daí, ele muda de vida e se torna cristão – e o mesmo homem que perseguia com violência os que invocavam o nome de Jesus agora pregava nas sinagogas, afirmando que Jesus é o Filho de Deus (cf. At 9,20-21).
No entanto, nossa Igreja possui vários outros santos que tiveram conversões extraordinárias: São Francisco de Assis e o milagre da Porciúncula; Santo Agostinho e a voz angelical que lhe dizia “Tolle lege”, São Maximiliano Kolbe e a visão de Nossa Senhora com as duas coroas; São Filipe Néri, São João Bosco, entre tantas outras… Mas apenas São Paulo possui uma festa litúrgica específica para comemorar sua conversão. Por que essa distinção?
A resposta é que nós comemoramos a conversão de São Paulo porque este homem foi o instrumento que Deus escolheu para anunciar o Evangelho aos pagãos e aos reis (cf. At 9,15), para ser testemunha de Cristo diante de todos os homens (cf. At 22,15).
Dizem os teólogos que “a graça constrói por sobre a natureza”, ou seja, que Deus se utiliza das circunstâncias ordinárias da vida de uma pessoa para operar nela sua vontade – e com São Paulo não foi diferente.
Ele nasceu em Tarso, cidade portuária e cosmopolita que funcionava como um importante entreposto comercial, e teve desde pequeno contato com a diversidade cultural e com as aspirações mais profundas do coração humano, que se manifestam por detrás das diferenças religiosas. Por outro lado, ele foi educado por uma família judaica de grande piedade, que sabia conviver pacificamente com as diferenças sem cair no relativismo de achar que todas as religiões são iguais aos olhos de Deus. Esta bagagem lhe propiciou conciliar a fidelidade aos elementos essenciais do Cristianismo com a diversidade cultural, sem cair nas tendências judaizantes que queriam absolutizar elementos históricos do povo de Israel para os cristãos vindos das nações.
Além disso, do ponto de vista pessoal, São Paulo tinha naturalmente um temperamento impetuoso que o impelia a defender com ardor a verdade que enxergava – e, se em sua juventude esta tendência acabou levando-o a perseguir injustamente os cristãos, Deus pôde depois utilizá-la como combustível para um pregador infatigável, que foi cinco vezes açoitado, três vezes flagelado com varas, uma vez apedrejado e três vezes naufragado, que fez viagens sem conta, exposto a perigos sem fim, trabalhos e fadigas, repetidas vigílias, com fome e sede, frequentes jejuns, frio e nudez! (cf. 2Cor 11,24-27).
Por meio de São Paulo, a notícia da salvação de Jesus chegou aos quatro cantos do Império Romano – e, se em 1500 a Europa cristã enviou suas caravelas ao Novo Mundo sob o estandarte da Cruz de Cristo, devemos isso, em parte, ao legado de São Paulo.
Peçamos, então, ao nosso padroeiro que rogue a Deus por nós, para que também nós, seus herdeiros espirituais, combatamos o bom combate, acabemos a carreira, e guardemos a fé!