Desde os primeiros séculos, o Cristianismo deu origem a novas formas de atuação social e a uma “Doutrina Social” (DSI), inaugurada com a publicação da encíclica Rerum novarum (1891).
Temos, portanto, uma direção segura para compreender a sociedade e atuar nela. Então, por que prevalecem entre nós o confronto e a polarização?
Em primeiro lugar, porque a DSI é pouco conhecida entre os leigos, a quem se dirige.
Além disso, muitas pessoas permanecem apegadas a aspectos particulares ou a determinados documentos (encíclicas, exortações apostólicas), que, embora sejam documentos basilares, não expressam a dinâmica viva da Doutrina Social.
Fruto do encontro entre o Evangelho, Tradição e Magistério da Igreja com as circunstâncias históricas, a DSI não é estática, mas um corpus teórico formado e renovado ao longo do tempo. Isso demonstra que a Igreja está atenta às mudanças sociais e, por meio do Magistério de cada Papa, procura dar respostas aos novos problemas, permanecendo fiel ao Evangelho.
O Papa Francisco, assim como seus predecessores Bento XVI, São João Paulo II, São Paulo VI e São João XXIII, são herdeiros da mais genuína tradição da Doutrina Social da Igreja, cujos fundamentos remontam aos Padres da Igreja.
Ao tomarem contato com os escritos e o testemunho de São João Crisóstomo, por exemplo, muitos cristãos ficarão surpresos com a “radicalidade” de seu amor a Cristo e sua atuação em favor dos pobres.
Por isso, não podemos ficar parados, enredados nas polêmicas doutrinárias, assumindo um lado ou outro, esquecendo o que é importante: cuidar daqueles que sofrem todo tipo de privações (materiais, culturais, educacionais) neste momento.
Lembremos que a DSI faz parte da evangelização e não se reduz a constatar as mazelas sociais, mas é também um sinal de esperança: é “anunciar Jesus Cristo com palavras e ações, isto é, fazer-se instrumento da sua presença e ação no mundo” (Congregação para a Doutrina da Fé – Nota sobre alguns aspectos da Evangelização). Essa novidade, que já experimentamos, deve se expressar por meio de numa nova sociabilidade, de decisões políticas apoiadas na dignidade humana.
Por isso, é fundamental nos perguntarmos: por que a erradicação da pobreza, que há séculos, constitui o maior problema brasileiro não é a prioridade política? Como proteger o grande contingente de pessoas que está sendo lançado na mais absoluta miséria? Que iniciativas têm sido tomadas para enfrentar o desemprego e a informalidade?
Vimos como a sociedade civil tem trabalhado ativamente para socorrer os mais necessitados, mas é preciso perguntar se as autoridades políticas estão movimentando todos os recursos disponíveis em defesa da vida neste momento, com transparência e medidas eficazes.
Um dos piores efeitos da pandemia talvez esteja por se revelar num futuro próximo: o que fazer com uma geração de jovens relegados ao esquecimento, sem estudo ou capacitação para o trabalho, condenados a serem cidadãos de segunda categoria?
Os desafios são imensos, e só poderemos enfrentá-los com eficácia, criatividade e principalmente com esperança se estivermos radicados em Cristo.
Somente assim poderemos ser testemunhas do Evangelho, despertar as forças para recomeçar, respeitar, dialogar com todas as pessoas, “encontrar pontos de união e traduzi-los em ações em favor da vida, de modo especial, a vida dos mais vulneráveis”, Campanha da Fraternidade (CF) 2021, edificando desde já uma novidade social e política.
Marli Pirozelli N. Silva é graduada em História e mestra em Filosofia da Educação, ambos pela USP. É professora universitária de Doutrina Social da Igreja.