Quem guardará os próprios guardas?

Já há muitos anos, criou-se, no meio jurídico, o costume de chamar o Supremo Tribunal Federal de “guardião da Constituição” – pois a sua missão institucional consistiria em proteger a legalidade e a ordem jurídica contra decisões arbitrárias e antidemocráticas. Esse papel institucional, no entanto, sofreu um revés com a liminar concedida pelo ministro Alexandre de Moraes, na sexta-feira, 17, na ADPF 1141.

A decisão suspendeu a eficácia de uma diretriz médica do Conselho Federal de Medicina (CFM) sobre os requisitos para a realização de assistolia fetal em caso de gravidez resultante de estupro. O procedimento da assistolia fetal consiste em injetar substâncias que fazem com que o coração de um feto vivo e normal pare de bater, e ele, assim, vá a óbito. Uma vez confirmada, por meio de ultrassom, a morte do bebê, administram-se medicamentos para forçar o parto do cadáver.

O CFM havia colocado um limite máximo de 22 semanas de gestação para esta prática – pois, a partir desta etapa gestacional, muitos são os bebês que podem perfeitamente sobreviver fora do útero. Ora, se a tecnologia médica atual permite a sobrevivência e o desenvolvimento extrauterino de bebês neste estágio de desenvolvimento, e se a legislação brasileira concede às mães o direito de entregar seus filhos voluntariamente à adoção, que motivo pode haver para matar o feto e somente depois expulsá-lo forçosamente do ventre? Por que não simplesmente permitir que ele se desenvolva e seja entregue a uma das tantas famílias que esperam para a adoção?

Uma tal decisão não é digna de um guardião da Constituição – por mais erudito que possa ser. Primeiro, porque, como sempre já apontamos diversas vezes neste espaço, a população brasileira é maciçamente contrária a este desprezo pela vida humana intrauterina. Em pesquisa recente, por exemplo, o Datafolha levantou que apenas 26% dos brasileiros declaram-se favoráveis a um relaxamento da legislação atual sobre o aborto.

Em segundo lugar, esta decisão vai contra a Constituição porque, no Brasil, quem tem autoridade para legislar é o Poder Legislativo, não o Poder Judiciário. A lei deu ao CFM o papel de definir o que é ético ao médico proceder; o Poder Judiciário não possui capacidade técnica para isso. A nossa Constituição é claríssima ao proteger a “inviolabilidade do direito à vida” (art. 5º), “desde o momento da concepção” (art. 5º, § 2º, c/c Convenção Americana de Direitos Humanos, art. 4, 1), como uma cláusula pétrea, que não pode sofrer alterações (art. 60, § 4º IV) e muito menos receber uma proteção insuficiente.

Em terceiro lugar, por fim, essa sede insaciável pelo sangue dos não nascidos é, no fundo, uma perversão do próprio Estado de direito – pois se nós homens nos organizamos numa sociedade civil e nos obrigamos a respeitar a Constituição e as leis, tudo isso só tem sentido na medida em que é um instrumento para salvaguardar a dignidade intrínseca de toda vida humana. E essa dignidade não surge quando o bebê sai do útero – o parto e o canal vaginal não têm esse poder mágico de “transformar” em seres humanos o que só era uma massa de células.

Em outras épocas, julgava-se que os índios e negros eram “sub-humanos” e legitimava-se a escravidão. Oitenta anos atrás, o regime nazista propagou uma ideologia odiosa, racista e antissemita com o propósito de eliminar todos aqueles que eram considerados indesejáveis e realizou-se o holocausto. Hoje, alguns argumentam que os fetos “não são humanos”, e se avança o genocídio de mais de 70 milhões de bebês a cada ano. Ai de nós, brasileiros, se nos tornarmos cúmplices desta chacina! Quem guardará os próprios guardas?

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