Nós, católicos, chamamos a São Bento, cuja memória litúrgica celebramos na quinta-feira passada, 11, de Padroeiro da Europa. Este título, porém, à primeira vista, pode causar algum estranhamento. A Europa, afinal, é muito mais ampla do que um mosteiro: com suas diversas nações, instituições públicas, tradições artísticas e culturais, ideais filosóficos e políticos, ela é, historicamente, uma civilização – da qual, inclusive, nós, brasileiros, descendemos por nossas raízes portuguesas. Por que, então, escolher um monge (e não um rei, um grande intelectual ou um estadista) como seu padroeiro principal?
Existe realmente um princípio de unidade que permite falar de uma cultura e de uma civilização europeias – e sua origem histórica se dá no contexto do esfacelamento do Império Romano, no final da Antiguidade. Os Césares, que outrora haviam dominado quase todo o mundo conhecido, agora já não conseguiam controlar suas fronteiras, a crise populacional e as invasões bárbaras escapavam cada vez mais ao controle, e a ordem social que havia vigorado por séculos dava lugar a incertezas generalizadas e uma sensação geral de insegurança. Nesse contexto, São Bento e seus seguidores popularizaram no Ocidente a ideia dos mosteiros: lugares onde homens e mulheres construíram verdadeiros ambientes de ordem e estabilidade em meio à anomia que os circundava.
É preciso entender que a intenção mais profunda desses milhares de jovens que se recolhiam nos mosteiros não era, propriamente, construir uma civilização nova, mas sim simplesmente buscar a Deus, quaerere Deum. Num mundo instável, em que a fugacidade das certezas humanas era trazida aos olhos com toda a clareza, os monges eram os que dedicavam sua vida a perseguir as realidades perenes, as verdades últimas sobre o sentido da existência – em resumo, o próprio Deus. A questão, no entanto, é que essa busca de Deus, organizada e praticada ao longo de séculos por gerações inteiras, trouxe consigo, como desdobramento natural de certas características da visão de mundo e da teologia cristãs, o florescer de uma nova civilização, que viemos a chamar de cultura europeia.
Essa localização das raízes da Europa no monaquismo ocidental é um tema clássico de muitos estudos aprofundados – e o famoso livrinho de Thomas Woods Jr. sobre Como a Igreja Católica construiu a civilização ocidental é uma boa introdução geral ao tema. No entanto, nos limites deste editorial, gostaríamos apenas de indicar dois pontos do Cristianismo que tiveram influência decisiva nesse processo: a cultura da palavra e a cultura do trabalho.
De um lado, a religião cristã inspirava nos monges um amor todo especial às Sagradas Escrituras, como a Palavra escrita que nos franqueava o caminho para Deus. Se Deus, porém, se dava a conhecer em palavras humanas, o acesso a este caminho supunha um domínio das artes profanas da linguagem e do pensamento, sistematizadas pelos grandes nomes da Antiguidade pagã. Daí que todo mosteiro tivesse, como parte integrante, uma biblioteca e uma escola.
De outro lado, o monaquismo cristão fermentou na Europa uma cultura de amor ao trabalho – que nunca havia existido nas culturas pré-cristãs. A Grécia pagã era um caso paradigmático: o trabalho era visto como coisa de escravos e indigno do homem verdadeiramente livre. Na mitologia babilônica, por sua vez, o trabalho era concebido como uma atividade onerosa e ingrata, que os homens foram criados para fazer de modo a deixar livres as divindades inferiores. Na tradição judaico-cristã, no entanto, o próprio Deus era entendido como trabalhador, pois na Criação a terra inteira era fruto de suas mãos. Além disso, o homem, desde sua criação no Éden, fora chamado a cultivar a terra, e assim participar livremente, com sua inteligência e esforço, da atividade criadora de Deus. O trabalho do monge é tão importante que São Bento dedica um capítulo inteiro de sua Regra ao tema, e faz seu próprio lema o Ora et Labora, “Reze e trabalhe”.
Se quisermos hoje preservar as inúmeras riquezas da civilização cristã em uma Europa e em um Ocidente que parecem renegar suas raízes, precisamos, mais do que apegar-nos a fórmulas e elementos externos do passado, reavivar em nós o desejo ardente de quaerere Deum, de buscar a Deus como fundamento e sentido da vida. Tudo o mais virá por acréscimo.