Depois de termos explorado, em editorial publicado na edição de 17.01.24, o documento do Concílio Vaticano II “sobre a Revelação”, gostaríamos de dedicar o espaço desta semana à constituição dogmática “sobre a Igreja”, chamada Lumen gentium (Luz das Nações). O tema é oportuno para uma compreensão da verdadeira natureza da Igreja Católica e do Cristianismo.
Se é verdade que muitas vezes só conseguimos compreender realmente uma coisa a partir de seu contraste (uma silhueta pode ser mais ilustrativa que uma foto), então, para entendermos os ensinamentos da Lumen Gentium sobre a Igreja, sua natureza e seu papel na história da salvação, precisamos nos situar um pouco no contexto dos debates que os grandes teólogos vinham travando sobre o assunto, nas décadas que precederam o Concílio. Na verdade, na primeira metade do século XIX, havia uma tendência hiper-racionalista e escolasticista de explicar o mistério da Igreja de um ponto de vista demasiado institucional e jurídico, concentrando-se demais nas suas estruturas visíveis e hierárquicas: a Igreja são as “dioceses”, os “conselhos de pastoral”, as “cúrias” e as “conferências”… Da mesma forma, a graça de Deus, pela qual o cristão cresce em santidade, era tratada quase como se fosse uma substância criada, infundida na alma dos fiéis.
Nesse cenário, alguns teólogos de língua alemã começaram um movimento de revalorização dos ensinamentos dos “Padres da Igreja” (aqueles grandes santos e doutores dos primeiros séculos do Cristianismo), que entendiam a vida cristã como um processo de participação da vida divina, e concebiam a Igreja como o prolongamento do Corpo de Cristo ao longo do tempo. Assim, a chamada “Escola de Tubinga” enxergava a graça e a salvação como uma verdadeira “deificação”, pela qual o próprio Deus se nos dá em seu Espírito; e concebia a Igreja como o Corpo Místico de Cristo, e assim o caminho privilegiado pelo qual a vida divina nos é comunicada, mediante os sacramentos.
Mais adiante, em 1952, já às vésperas do Concílio, o suíço Hans Urs von Balthasar argumentava que, ao longo dos séculos, a Igreja havia-se encastelado por detrás de algumas “muralhas” que criavam divisões entre ela e o mundo, e mesmo entre os leigos e o clero, e que essas muralhas acabavam dificultando o cumprimento do mandato missionário de levar o Evangelho a todos os povos. Por isso, defendia ele, era preciso abrir as portas, para tornar o verdadeiro tesouro da Igreja acessível aos homens de nossa época.
À luz desse contexto, conseguimos apreciar melhor a riqueza da eclesiologia que o Espírito Santo presentou à Igreja por meio da Lumen gentium. Já de início o documento reconhece que “Cristo é a luz das nações” – e que, embora esta luz “resplandeça no rosto da Igreja” (super faciem Ecclesiae resplendente), é preciso “tornar mais clara” (declarare) aos homens do mundo moderno “sua natureza e sua missão” (n.1)
Este é, no fundo, o ensinamento essencial da Lumen gentium: a Igreja vai muito além de suas instituições e estruturas visíveis; ela é o povo de Deus, o Corpo de Cristo, em que são chamados a misticamente incorporar-se, pelo Espírito Santo, os homens de todas as nações. Daí que “pertencer à Igreja” é muito mais do que um fato sociológico ou cultural: trata-se de ser membro de um organismo vivo e espiritual, e receber a vida de Cristo, especialmente mediante os sacramentos (n. 7).
Esta compreensão do caráter místico da Igreja é particularmente importante numa época como a nossa, em que cada vez mais as pessoas pretendem “seguir Jesus, mas não a religião”. A Igreja não é, fundamentalmente, uma “religião” ou uma “instituição” – ela é o próprio corpo vivo de Jesus Cristo.
Permaneçamos, portanto, unidos a ela: sejamos membros deste corpo, para assim participarmos também de sua vida eterna.