“Amou-nos até o fim”

Com esta solene celebração vespertina, iniciamos o Tríduo Pascal. Esta mesma celebração se estende por três dias, trazendo à tona o grande mistério de salvação que celebramos e revivemos. É o mistério do amor do Senhor Jesus que realiza o projeto de amor do Pai, com a força do Espírito Santo. É o mistério que toca o coração do ano cristão porque os acontecimentos revividos nestes três dias constituem o coração de toda a história. “É a Páscoa do Senhor!” (cf. Ex 12,11), é a passagem de Deus que liberta o seu povo oprimido e aviltado da escravidão do Egito, é apassagem de Cristo que nos salva e que transforma a nossa humanidade oprimida.

Entramos no Tríduo Pascal com um banquete. Foi precisamente de um banquete que nosso Salvador quis iniciar a ação decisiva da nossa redenção. Eis o reconhecimento positivo de uma realidade comum e preciosa, como, na vida humana, uma mesa posta com comida! Um grupo de pessoas reunidas em torno de uma mesa sempre expressa, pelo menos implicitamente, um desejo de comunhão, um desejo de amizade sincera, uma busca de serenidade e harmonia. Quando chega a hora da sua Páscoa, a hora da passagem, da nossa redenção, Jesus escolhe este sinal do banquete, significativo e humano, e carrega-o de uma graça inaudita. Seu banquete não é mais apenas um sinal, mas se torna um sinal eficaz, isto é, um sacramento. Assim nasce a Eucaristia: tesouro divino que fica para sempre nas mãos dos homens. Ela nos é dada como um dom de um amor que atinge a máxima intensidade. Somos, pois, exortados a continuar o banquete eucarístico sem interrupção “até que Ele venha” (cf. 1Cor 11,26)

A noite do dom da Eucaristia, o maior dom do amor, é também a noite da traição. Não conseguiremos compreender toda a profundidade da Quinta-feira Santa se esquecermos desta sombra inexplicável e trágica que paira sobre a Última Ceia do Senhor. O evangelista João nos recorda isso sem atenuar, dizendo que, “enquanto comiam”, “o diabo já tinha posto no coração de Judas, filho de Simão” (cf. Jo 13,2), o desejo de trair Jesus. São Paulo também observa cuidadosamente em seu relato que o grande dom da Eucaristia foi dado por Jesus precisamente “na noite em que foi entregue” (cf. 1Cor 11,23). É uma história dramática, que nos obriga a recordar, juntamente com a generosidade do Senhor, a terrível possibilidade do homem rejeitar o seu criador.

Originalmente a palavra “tradire” significa “entregar”. Jesus deixou-se entregar aos seus inimigos e, por isso, quis sofrer, entre todos os sofrimentos, também o amargo e pungente sentimento da ingratidão e da traição, a resposta inexplicável do homem à sua iniciativa de amor. Devemos sempre temer a nós mesmos e, mesmo que pareçamos amar o Senhor, nunca devemos deixar de rezar com trepidação para que a graça da perseverança e de um coração grato nos seja concedida até o fim de nossos dias. Mas ao mesmo tempo em que foi entregue aos seus inimigos, Jesus também se entregou aos seus amigos, também se entregou a nós, para fortalecer na nossa adesão e comunhão com Ele.

Naquela noite da Última Ceia em Jerusalém, no mesmo cenáculo, à mesma mesa, opuseram-se o amor de Deus e a traição do homem. Mas o amor de Deus venceu, como nos ensina a Eucaristia. Na Eucaristia, Deus se aproximou tanto do homem que, doravante, ninguém deve se sentir sozinho e abandonado diante das forças do mal. Nunca como na Quinta-feira Santa teremos outra certeza reconfortante de que o Senhor está verdadeiramente conosco.

Irmãos e irmãs, Ele ama até o fim ao ponto de levar seu amor até o fim, até o extremo: Deus desce de sua glória divina, deixa de lado as vestes de sua glória divina e veste as vestes de um escravo. Ele desce até as profundezas da nossa fraqueza e nos lava. Por fim, este amor faz com que Ele esteja continuamente ajoelhado diante dos nossos pés e nos presta o serviço da purificação, fazendo-nos capazes de Deus. Seu amor é inesgotável, porque nos amou até o fim.

Dom Cícero Alves de França
Bispo Auxiliar de São Paulo e Vigário Episcopal para a Região Belém

*Artigo publicado no Folheto Litúrgico ‘O Povo de Deus em São Paulo’ na Missa Vespertina da Ceia do Senhor

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