Escutai o que Ele diz

A página do Evangelho que narra o evento da transfiguração de Jesus começa mostrando que Ele tomou consigo Pedro, Tiago e João e os levou sozinhos a um lugar à parte, sobre uma alta montanha. Faz um movimento de subida para estar no lugar da proximidade com Deus. Os eleitos por Jesus para estar com Ele não eram os mais santos, mas os três discípulos que tiveram sérias dificuldades em aceitar a cruz. Pedro foi chamado de satanás por querer tirar a cruz do caminho de Jesus e, na hora da provação, o negou por três vezes. Os irmãos Tiago e João queriam os melhores lugares quando Jesus começasse a reinar. A transfiguração ajuda-os, e também a nós, a ver que no meio do caminho há cruz. 

Enquanto estavam no alto monte, Jesus se transfigurou, sua roupa ficou brilhante e branca e lhes apareceram Elias e Moisés, que estavam conversando com o Senhor. É a visão do céu, da glória, para mostrar que a vida tem cruz, mas não termina na cruz: no fim há vitória, há a ressurreição. Pedro, então, propõe construir três tendas, uma proposta bem interessante para quem está no alto monte, lugar onde não se sentem incomodados com o que está acontecendo na planície. É o grave pecado da omissão e do individualismo. Um texto do profeta Amós descreve bem esta experiência de morar no alto monte: “Ai dos que estão tranquilos em Sião e se sentem seguros no monte da Samaria. (…) Deitam-se em camas de marfim. Esparramam-se em cima de sofás, comendo os cordeiros do rebanho e os novilhos cevados em estábulos. Cantarolam ao som da lira, inventando, como Davi, instrumentos musicais. Bebem canecões de vinho, usam os mais caros perfumes, sem se importarem com a ruína de José” (Am 6,1.4-6).

Em cada época, a sociedade constrói suas tendas para viver despreocupada e longe dos problemas. Temos shopping centers com um cheiro agradável, segurança, comida saborosa, roupas novas… Temos condomínios fechados, e se reproduz o que chamamos de “arquitetura hostil”, para que pessoas com “problemas” não se aproximem. São muitas as tendas, e elas levam as pessoas a ficarem isoladas do grande público, fazendo-as esquecer os problemas que afligem a humanidade.

É perceptível entre nós o fortalecimento de um tipo de seguimento pouco exigente, uma espiritualidade pouco comprometedora, que quer um Jesus tão somente “religioso”, ignorando toda dimensão política, libertadora e transformadora presente nas suas palavras e atitudes. Afinal, Ele não consumiu sua vida dentro de templos e sinagogas, mas no meio do povo, expulsando demônios, curando doentes, perdoando pecados e, sobretudo, enfrentando as forças destruidoras do Império Romano, bem como tecendo sérias críticas à religião da época, que, aliada aos grandes, impunha fardos pesados para o povo carregar. 

Diante da cena da transfiguração, os discípulos ficaram com medo. Lucas diz que eles ficaram com sono. Medo e sono podem ser sinais ou justificativas para quem se recusa a superar possíveis obstáculos, a permanecer na mesmice de sempre. Interessante que esses três discípulos serão conduzidos à parte no monte das Oliveiras, para participarem da tristeza e da angústia do Filho do Homem (cf. Mt 26,37). “Neste monte, será Jesus a prostrar por terra, e os discípulos ficaram dormindo. Eles são como nós: têm dificuldade para entender a cruz” (Frei Carlos Mesters).

“Este é o meu Filho amado. Escutai o que ele diz.” Escutar é a primeira atitude dos discípulos, prática muito recomendada neste tempo quaresmal. A comunidade cristã, lugar privilegiado para apreciar a Palavra de Jesus, tem que primar pela fidelidade à sua mensagem, cuidando para que “a força libertadora do Evangelho não fique bloqueada pela linguagem e por comentários alheios ao seu Espírito” (José Antônio Pagola, Sacerdote). 

E tudo se conclui com um movimento de descida da montanha. Agora, animados com a visão da glória e a revelação da divindade de Jesus, os discípulos caminharam com Ele pelas planícies por onde se encontrarão com doentes, pobres, pecadores, explorados, estrangeiros…, e serão desafiados a tomar atitudes libertadoras, fraternas e conciliadoras, como nos propõe a Campanha da Fraternidade deste ano: “Fraternidade e diálogo: dom e compromisso”. E, descendo do monte, é preciso guardar para si a experiência da teofania, não dizer nada a ninguém, “para não alimentar falsos messianismos, para não alimentar uma falsa religiosidade que busca os milagres de Deus para evitar a cruz” (Sandro Gallazzi, biblista).   

guest
0 Comentários
Inline Feedbacks
Veja todos os comentários