A Quaresma é um tempo propício para se viver a espiritualidade do deserto; afinal, este tempo é, antes de tudo, de busca e encontro, em que o grande convite é a conversão.
A espiritualidade do deserto é um grande manancial que não perde sua força. Isso porque o deserto é um lugar de encontro, de descoberta e, sobretudo, um lugar de crescimento. Por ser um lugar árido, aparentemente sem vida, parece, à primeira vista, um lugar de morte. Entretanto, o deserto é o lugar onde Deus fala ao coração, penetra no mais íntimo do ser, onde Ele diz o Seu nome. Em termos bíblicos, o deserto está estritamente ligado à experiência de libertação, não somente como um lugar de refúgio, mas local onde se pode renovar e descobrir novas fontes de vida.
Cumpre-nos a definição de deserto: um espaço de tempo que se situa fora da experiência histórica. Em outras palavras, o homem como ser histórico, concreto e autêntico é “situado”, sua existência se concretiza na história, no tempo. Deus, por mais universal que seja a sua mensagem, ao “entrar” no seio da humanidade se “situou” no tempo, utilizou-se da língua humana e cultura local, com o propósito da universalidade de sua pregação e atos que não se situam no tempo e/ou na história linearmente concebidos. Deste modo, o tempo do deserto é como um período espaço-temporal, antes como uma busca atemporal do Eterno que não cabe no tempo, uma verdadeira conversão da realidade objetiva de si em busca do Eterno Outro que marcou a história.
Este tema assume, sobretudo nos dias atuais, uma grande importância, sendo que na espiritualidade do deserto se encontra o cerne da experiência existencial do homem, em que ele se encontra exposto; afinal, o deserto se torna lugar de procura, de orientação, em que a vida muda e se renova. Assim, na atualidade em que a estabilidade das instituições significantes e objetivas da vida humana se encontram obnubiladas, em que se tem tanto barulho e pouca interioridade, sente-se cada vez mais a necessidade daquele encontro, de repousar a cabeça e encontrar significações à opulência de nossas vidas e alternativas aos modelos econômicos que nos objetificam e nos transformam em mercadorias facilmente substituíveis e sem importância.
Portanto, uma espiritualidade do deserto não significa uma espiritualidade sem história, isto é, não se trata de espiritualismo. Por isso, a Quaresma nos serve como um caminho de silêncio, de solidão e de oração no deserto com Jesus, que nos abre os olhos a uma realidade mais profunda, nos ensina a transformar as nossas dores em cantos de alegria e a pronunciarmos palavras de esperança. Auxilia-nos no desafio perpétuo, difícil e doloroso do equilíbrio entre nossas paixões, realizações de nossos anseios e, ainda, a nos solidarizarmos com as perdas, com as misérias, com as condições inumanas às quais muitos são submetidos. Em suma, um verdadeiro caminho cristão.