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Viveu um dia e cumpriu sua missão

Na vida prática de padre, não foram poucas vezes que ouvi alguma pessoa se confessar de ter praticado um aborto. Às vezes, tratava-se de acontecimento passado, muito distante, até já confessado. Quase nunca os argumentos de consolo conseguiam convencer aquela pessoa de que Deus já a havia perdoado. Sempre foi muito difícil dizer alguma coisa que aliviasse aquela consciência ferida. No final, o que restava era dizer à pessoa que falasse em Confissão sobre aquilo toda vez que sentisse necessidade, mas não para obter perdão e sim para sentir alívio. 

Pensando nisso, recordo o que me aconteceu há muitos anos, em uma paróquia na qual fui pároco. Um dia, meu vigário paroquial me procurou e contou que uma comunidade de estudo bíblico de rua tinha se deparado com uma jovem de 15 anos de idade que se encontrava grávida do namorado, também ele bastante jovem. Nos exames médicos, havia se constatado que a criança tinha o problema de anencefalia. Portanto, tratava-se de uma criança que, se chegasse a nascer, não sobreviveria muito tempo. As senhoras dessa comunidade começaram a refletir com a jovem sobre o valor da vida que ela carregava e a animavam a receber aquela criança de modo a não interromper a gestação. Conseguiram convencê-la e chamaram o padre em questão. A jovem mãe disse-lhe que desejava que ele estivesse junto dela na hora do parto, para poder batizar imediatamente sua criança recém-nascida. Ele concordou. Também a médica que a acompanhava respeitou sua decisão. 

Meu amigo padre, porém, precisou fazer uma viagem inesperada e estava preocupado com o compromisso que havia assumido. Por isso, me pediu: “Se você aceitar me substituir, darei seu telefone para a médica. Quando ela ligar, você deixe o que estiver fazendo e vá para o hospital, para acompanhar a jovem no parto e batizar o filho dela!” Aceitei o compromisso e assim aconteceu. Nunca tinha visto aquela menina que estava ali para dar à luz uma criança que sabia que não sobreviveria. Falei com ela e fiquei a seu lado. A médica me avisou no exato momento do nascimento da criança. A enfermeira que tomou a criança nos braços disse de longe: “Ela não quer ver a criança, não. Não é?” Antes que eu perguntasse à mãe se queria ver a criança, ela respondeu com voz forte: “Quero sim!” A enfermeira, então, trouxe a criança e a pôs de frente para a jovem, que chorou muito. Em seguida, ela se retirou para outra sala e eu fui atrás para batizar a criancinha. 

Depois de me despedir da mãe e rezar por ela, fui embora. Alguns dias depois, estava para celebrar a missa e um dos ajudantes me avisou que aquela missa seria de 7º dia da criança que eu assistira nascer e batizara no hospital. Seu nome foi mencionado na missa. Depois que terminou, a jovem veio com seu namorado para me cumprimentar. Estava tão serena e tranquila que não parecia ter passado pelo que passou. Pensei que aquela mãe tinha sido poupada da ferida na consciência de se confessar perpetuamente a mesma coisa, mesmo diante dos argumentos de que tinha sido perdoada já. Mas, para além disso, contaram-me o que aconteceu naquele dia em que a criança nasceu. Sua família tinha se reunido no hospital. Fazia muito tempo que isso não acontecia. O jovem pai, quando foi ver a criança, emocionou-se porque a criança, mesmo sem ter uma parte do cérebro, teve a reação de segurar o dedo dele. E ele chorava, agradecendo aquela comunidade que o ajudou a ter aquele momento de ver sua filha segurando o seu dedo. A criança durou um dia e faleceu. Quando meu amigo padre retornou de viagem, contei tudo a ele, concluindo que a criança vivera um dia. E ele me respondeu: “Viveu um dia e cumpriu sua missão!” 

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