O mundo ficou mais violento e ameaçador. A chamada “luta de classes”, que alimentou os debates e embates dos séculos XIX e XX, como que se transfigurou em uma constelação generalizada de tensões e conflitos étnicos, religiosos, identitários, nacionalistas, ideológicos… Na contração da globalização, proliferam as lutas locais. Polarizações extremadas se formam e se enfrentam até mesmo no âmbito da amizade interpessoal, no interior das famílias, das comunidades, para não falar de partidos, corporações e lutas pela tomada ou manutenção do poder.
Os enfrentamentos se revestem de roupagens diversas. De um lado, vê-se a criação e difusão indiscriminada, em particular pelas redes digitais, do ódio, da mentira, do ataque e da difamação. Notícias, fatos, boatos e imagens se mesclam e se confundem. Os números, informações e algoritmos da Inteligência Artificial (IA) vêm sendo utilizados de forma distorcida e devastadora. Essa “praça pública” da internet tornou-se uma floresta cerrada, na qual se multiplicam como cogumelos os influenciadores, com seus diversos enfoques. Muitos acusam, denunciam, inventam, gritam, apontam o dedo em riste, criam falsas montagens de som e imagem.
As narrativas se cruzam e recruzam em um duelo no qual não há vencedores e vencidos. Apenas o jogo gratuito e, ao mesmo tempo, funesto, de exibir a própria performance. Exibicionismo! Desnecessário apresentar provas, documentos, testemunhas. Importa, isso sim, falar grosso e, se possível, baixar o nível dos enfrentamentos, aparentar valentia. Mas, cuidado: embora o campo das redes digitais e da internet esteja marcado por uma contaminação tóxica, por muito veneno e ervas daninhas, nada invalida o uso correto e responsável de todo e qualquer instrumento dos avanços tecnológicos. Vale aqui o exemplo da faca: utensílio antigo, importante e indispensável na cozinha, por exemplo, mas que serve também para perpetrar não poucos feminicídios.
Semelhante contexto mundial e globalizado de combate, em suas formas mais deletérias, encontra na Faixa de Gaza um poderoso alto-falante. Reflete e amplia a violência. Em décadas passadas, era possível e comum debater temas de ordem socioeconômica e político-cultural, mesmo entre pessoas de distintos povos, etnias, crenças e nações. Hoje, praticamente toda discussão passa pelo pertencimento identitário. O que torna os conflitos, inevitavelmente, mais extremos e viscerais. Impossível elevar os debates sociais ou acadêmicos a um nível respeitoso e tolerável. Emerge logo a divisão nefasta entre os “nossos” e os “outros”, os “bons” e os “maus”.
Não raro, etnia, religião e política formam um caldeirão explosivo. Em lugar de servirem como referenciais distintos e reciprocamente iluminadores, convertem-se em uma mistura diabólica e devastadora, em uma arma de “guerra santa” contra o outro, o diferente e estrangeiro. Este jamais será somente um opositor ou adversário, mas sim um inimigo a ser suprimido de forma implacável. Nas horas de caos e transição existencial, o estranho constitui o “bode expiatório” por excelência. O imigrante e refugiado é o primeiro a ser aniquilado. De fato, quando, em pleno campo de batalha, combatem frente a frente a nação, a identidade ou o “Deus verdadeiro”, lida-se com valores absolutos e absolutamente contrastantes e contraditórios. O outro deixa de pertencer à família humana: é selvagem, terrorista, animalesco, vítima a ser sacrificada para a sobrevivência do “eu” – pessoa, etnia povo ou nação.