10 anos com Francisco: ‘Não podemos deixar ninguém caído nas margens da vida’

A frase do Papa Francisco que dá título a este artigo, escrita na Fratelli tutti (FT 68), bem explicita a paixão humana que move o Santo Padre. Como ser cristão e permanecer indiferente à dor de tantos nossos irmãos? Nunca será demais lembrar que essa não é uma opção ideológica, mas uma posição existencial que nasce do seguimento de Cristo – um convite para que nós mesmos, seguindo o caminho trilhado por Francisco, nos descubramos cada vez mais perto de Cristo

Arte Jovenal Pereira sobre fotos de Vatican Media e Luciney Martins/O SÃO PAULO

Em julho de 2013, o Papa Francisco fez a primeira viagem de seu pontificado. Destino: Lampedusa, uma ilha ao sul da Itália, ponto mais próximo do continente africano, a 113km da costa tunisiana. Essa pequena ilha é a porta de entrada dos imigrantes que embarcam numa viagem arriscada em barcos precários e botes infláveis, permanecendo por dias à deriva, até que sejam socorridos pela guarda costeira.

O trajeto pelo Mediterrâneo torna-se um caminho de esperança, mas, também, de infortúnio, pois dezenas de pessoas sucumbem no decorrer da viagem, vítimas da fome, frio e de naufrágios, como o ocorrido em 2013, que vitimou cerca de 360 imigrantes. E este fluxo continua a existir. Estima-se que somente em 2021 chegaram ali 12 mil pessoas, em barcos, vindas da África.

A visita a Lampedusa e o encontro do Papa com os imigrantes e habitantes da cidade, longe de ser um fato midiático, foi uma manifestação de sua personalidade dinâmica e da concepção de Igreja que passaria a predominar em seu pontificado.

O Papa propõe uma Igreja em saída, que não espera ser procurada pelos necessitados, mas vai ao encontro daqueles que estão caídos nas margens da sociedade, descartados pelos sistemas econômicos vigentes, porque são idosos, doentes, indefesos ou não possuem capacidade produtiva para inserir-se na sociedade.

O Papa Francisco, vindo de uma grande cidade da América Latina, repleta de contrastes econômicos e sociais, escancarou uma das grandes janelas da Igreja, dirigindo nosso olhar para situações “invisíveis”, lembrando-nos de que o Cristianismo deve permear todos os contextos sociais e existenciais, alcançando principalmente os mais frágeis (pobres, nascituros, migrantes, refugiados, idosos, desempregados, sem teto, toxicodependentes, entre outros).

A insistência em exigir medidas internacionais para acabar com a pobreza e o cuidado para com os excluídos não é, portanto, uma opção ideológica, mas uma opção evangélica e que sempre fez parte da prática pastoral do Papa.

Como sacerdote, Francisco percorria as periferias de Buenos Aires (villas), levando consigo jovens seminaristas para conhecerem de perto a pobreza e a realidade cruel das novas formas de escravidão (prostituição, adolescentes inseridos no tráfico, alcoolismo, entre outras mazelas). Ele lhes dizia que “só compartilhando a vida dos pobres, poderiam descobrir as verdadeiras possibilidades da justiça no mundo opostas a uma justiça abstrata”

Atento aos novos contextos econômicos, sociais e culturais, Francisco procura identificar os mecanismos geradores das diferentes formas de exclusão e convoca todos os homens de boa vontade a buscarem soluções para os grandes desafios atuais, sem excluir nenhuma contribuição.

De forma coerente, assumiu integralmente os princípios norteadores da Doutrina Social da Igreja (defesa da dignidade, bem comum, solidariedade e subsidiariedade) e sublinhou elementos tais como o cuidado com os mais frágeis, a misericórdia e a busca da fraternidade universal.

O Papa propõe uma Igreja que seja um sinal de caridade no mundo, algo que nos remete aos primeiros tempos: uma Igreja simples, solícita com as necessidades concretas das pessoas (assim foi instituída a diaconia), atenta aos mais frágeis, oferecendo proteção às viúvas e órfãos, visitando os presos, cuidando de cristãos e pagãos durante as grandes epidemias dos séculos I e II.

Esta é uma grande característica da proposta de Francisco: nenhuma abstração, nenhum valor apenas teórico, porque “Jesus quer que toquemos a miséria humana, que toquemos a carne sofredora dos outros” (Evangelii gaudium, EG 270).

Por Marli Pirozelli N. Silva,  Professora universitária de Doutrina Social da Igreja, com especialização em Doutrina Social (PUC-Goiás), graduação em História e mestrado em Filosofia da Educação, ambos pela USP.

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