A encíclica Fratelli tutti e os refugiados e migrantes

O desrespeito aos refugiados, por violar a dignidade da pessoa humana, afronta todas as dimensões dos direitos fundamentais. Tais práticas, no mínimo, aniquilam o direito à liberdade e suprimem os direitos sociais. Pelo princípio da dignidade humana, todo ser humano deve ser reconhecido como membro da humanidade e ser tratado com respeito e consideração pelos demais indivíduos, grupos, organizações sociais e pelo Estado. Trata-se de princípios que devem orientar toda a humanidade, particularmente caros aos católicos, brilhantemente expostos na encíclica Fratelli tutti, do Papa Francisco.

ACNUR

O século XXI trouxe situações complexas, difíceis e até aterrorizantes: viu-se que nada é perene, cristalino e concreto. Embora vivendo em uma sociedade globalizada e digital, as relações humanas parecem ter retrocedido. Vive-se o agora, o instantâneo, o imediato e apenas o momento. Os acontecimentos, os desastres, as guerras e as misérias humanas passaram a ser meras notícias, que se diluem com as próximas.

O mundo experimenta grandes mudanças, transformações e, especialmente, grandes dificuldades nos mais diversos pontos do globo. Tornou-se comum conviver com conflitos armados, a fome e a seca, impondo que o ser humano se desloque e seja empurrado de sua casa, de sua cidade, de seu país e até de sua própria vida.

A esse respeito, vale mencionar a encíclica Fratelli tutti (FT), escrita pelo Santo Padre, Papa Francisco, no ano de 2020, em que se aborda uma grande variedade de temas, conexos à ideia de aprofundamento da fraternidade e da amizade social à luz do Evangelho de Jesus Cristo, destacando-se a necessidade de eliminação de fronteiras entre as pessoas, a existência de conflitos e o medo, a globalização e o progresso sem um rumo comum, as pandemias, bem como as pessoas que são obrigadas a se refugiar ou imigrar.

Como registra o Papa Francisco, vive-se na atual conjuntura um dos mais perigosos momentos da humanidade desde a Segunda Guerra Mundial, de modo que a humanidade parece ter chegado ao seu limite. Consoante escreve, “há regras econômicas que foram eficazes para o crescimento, mas não de igual modo para o desenvolvimento humano integral. Aumentou a riqueza, mas sem equidade e, assim, ‘nascem novas pobrezas’ [Caritas in veritate, CV 22]” (FT 21). Em suas palavras:

“As guerras, os atentados, as perseguições por motivos raciais ou religiosos e tantas afrontas contra a dignidade humana são julgados de maneira diferente, segundo convenham ou não a certos interesses fundamentalmente econômicos: o que é verdade quando convém a uma pessoa poderosa, deixa de sê-lo quando já não a beneficia. Estas situações de violência vão-se multiplicando cruelmente em muitas regiões do mundo, a ponto de assumir os contornos daquela que se poderia chamar uma terceira guerra mundial por pedaços” (FT 25).

Nesse contexto, a questão relacionada aos migrantes e refugiados, no sentido de serem acolhidos e tratados como seres humano dignos e detentores de direitos, não pode ser entendida como um problema deste ou daquele país, mas como demanda de toda a humanidade, e não apenas do catolicismo, sendo necessário o combate a todo e qualquer tipo de discriminação e de intolerância.

Como ressalta o Papa Francisco na Fratelli tutti, apesar de ser propagado por alguns regimes populistas, a partir de leituras econômico-liberais, que se deve evitar a todo custo a chegada de pessoas migrantes, inclusive com limitação à ajuda para países pobres, tais afirmações, além de imprecisas, ignoram o fato de que migrantes e refugiados são seres humanos com a vida dilacerada (FT 37).

É necessário que se retome a noção de que se impõe respeitar a dignidade de cada pessoa humana, que isso implica respeito mútuo entre as pessoas, no ato da comunicação e na oposição a qualquer interferência indevida na vida privada pelo Estado. Tais direitos são inerentes, reconhecidos pelas pessoas, não podendo, portanto, ser desconhecidos ou negados pelo Estado. A este cabe, ainda, criar condições favoráveis para sua integral realização. Como aponta o Papa Francisco:

“Muitas vezes, constata-se que, de fato, os direitos humanos não são iguais para todos. O respeito destes direitos é condição preliminar para o próprio progresso econômico e social de um país. Quando a dignidade do homem é respeitada e os seus direitos são reconhecidos e garantidos, florescem também a criatividade e a audácia, podendo a pessoa humana explanar suas inúmeras iniciativas a favor do bem comum” (FT 22).

É preciso, portanto, não só colocar em prática os ensinamentos trazidos na encíclica em questão, mas, sobretudo, recordar-se das advertências feitas pelo Papa Francisco, para quem “cuidar do mundo que nos rodeia e sustenta significa cuidar de nós mesmos” e, mais do que isso, “precisamos nos constituirmos como um ‘nós’ que habita a casa comum”.

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