Muitas vezes vista como mero elemento indesejável da paisagem urbana, a população em situação de rua não goza do mesmo grau de respeito e consideração conferido aos demais cidadãos, o que é incompatível com um Estado que tem entre seus objetivos fundamentais a erradicação da pobreza e a obrigação de realizar e concretizar direitos sociais. Para que sejam cumpridos esses objetivos em relação à população em situação de rua, é urgente a efetivação do direito social à moradia.
Luciney Martins/O SÃO PAULO
Em uma segunda-feira, por volta das 8h da manhã, José dormia enrolado em um cobertor quando foi acordado com um jato d’água. Ainda sem entender o que acontecia, se levantou-se rapidamente e, quando se deu conta, a mochila que usava para guardar seus poucos pertences pessoais havia desaparecido. Logo a viu na caçamba de um caminhão que trazia os dizeres “Limpeza Urbana”. A cena aconteceu em São Paulo, mas poderia ser no Rio de Janeiro (RJ), em Recife (PE) ou em Curitiba (PR), já que todos os grandes centros urbanos compartilham dessa inaceitável realidade de milhares de pessoas que fazem da rua sua moradia.
O Decreto 7.053/2009, que institui a Política Nacional da População em Situação de Rua, define população em situação de rua como o “grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional regular, e que utiliza os logradouros públicos e as áreas degradadas como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as unidades de acolhimento para pernoite temporário ou como mora dia provisória”. Em suma, quem está na rua é quem não tem casa, sendo esse o ponto central da definição.
O mesmo decreto determinou, ainda em 2009, que fosse instituída a contagem oficial da população em situação de rua em âmbito nacional, o que não se concretizou até o presente momento. A justificativa oficial é a complexidade de realizar contagem de população sem endereço fixo. Assim, a população em situação de rua continua invisível nos dados oficiais, o que prejudica a implementação de políticas públicas. Sem dados oficiais, resta-nos socorrer pelas estimativas. A mais recente delas, publicada pelo IPEA em dezembro de 2022, apontou crescimento de 38% da população em situação de rua entre 2019 e 2022, chegando pelo menos a 281.472 pessoas.
Esse número inaceitável de pessoas que vivem nas ruas tem em comum, além da falta de moradia, o cotidiano marcado pela violência. Viver nas ruas apresenta-se como resultado de uma série de violações de direitos ao mesmo tempo em que enseja e potencializa novas violações. Por não ter garantido o seu direito à moradia, essas pessoas sofrem diversas outras violações. Leis que criminalizam a pobreza, construções que impedem que descansem nas ruas, operações de limpeza que subtraem seus pertences pessoais são apenas alguns dos exemplos das violações à integridade física e psicológica de quem está em situação de rua.
A violência contra as pessoas em situação de rua também se revela no desprezo injustificado que sofrem por parte significativa da sociedade – no episódio do líder indígena Galdino Jesus dos Santos, queimado vivo enquanto dormia em um ponto de ônibus em Brasília (DF) em 1997. Galdino não vivia nas ruas, mas foi confundido como tal, e, por estar dormindo numa via pública, alguns se sentiram autorizados a exterminá-lo. Um dos responsáveis pelo assassinato se justificou publicamente: “Desculpa, pensei que era um mendigo”, como se tal confusão justificasse o ato hediondo.
A falta de moradia é um profundo atentado à dignidade, à inclusão social, ao direito à vida, à não discriminação, à saúde, à água, ao saneamento, à segurança e à vedação a tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes. Não há superação da situação de rua sem acesso à moradia. Paremos de normalizar a vida nas ruas. Direito à moradia é direito fundamental básico e precisa ser tratado como tal.