Foi a mim mesmo que o fizestes

Um dos principais problemas crônicos de nossa cidade, sabemos todos, é a grande massa de pessoas vivendo na rua: homens e mulheres que levam a vida sem um teto sob o qual dormir – e muitas vezes carentes de alimentação ou higiene pessoal básica, e, no limite, privados da própria dignidade. O último censo da Prefeitura, realizado ainda em 2019, contava 24.344 pessoas nesta situação – mas com a pandemia este número já cresceu para mais de 32 mil, conforme estima o Serviço Franciscano de Solidariedade (Sefras). Nos meses do inverno, como agora, o drama humano chega a ponto de registrarem-se, ocasionalmente, óbitos ligados às baixas temperaturas…

O poeta inglês e veterano da Primeira Guerra Studdert Kennedy (1883-1929) escrevia que um dos maiores males de seus dias (e também dos nossos) é a indiferença: aquela apatia com que simplesmente não nos importamos em relação aos que nos circundam. No poema When Jesus Came to Birmingham (“Quando Jesus veio a Birmingham”), ele escreve que naquela cidade inglesa os homens não O trataram como no Calvário: não O pregaram ao madeiro, nem O coroaram de espinhos. Não: eles agora eram civilizados! Por isso apenas passaram-Lhe ao largo, deixando-O ensopado na sarjeta, sob gélida chuva do inverno, enquanto seguiam tranquilos a suas próprias casas… “E Jesus reclinou-se então num muro, e suspirou pelo Calvário!”. Contra esse tipo de indiferença que tanto machuca a Nosso Senhor, o Papa Francisco anunciara, ao proclamar o Ano Santo da Misericórdia, seu desejo de “acordar a nossa consciência, muitas vezes adormecida perante o drama da pobreza, e de entrar cada vez mais no coração do Evangelho, onde os pobres são os privilegiados da misericórdia divina” (bula Misericordiae vultus, 15).

A misericórdia pode, na verdade, ser chamada “viga mestra que sustenta a vida da Igreja” (Idem, 10): não porque a Igreja seja uma mera ONG de assistencialismo filantrópico (pois não o é!), mas porque as obras de misericórdia comunicam graças àquele que as exerce. Se “Deus é amor”, se Ele é doação amorosa do Pai ao Filho, no Amor do Espírito, então só poderá “possuir a Deus” aquele que também entrar numa dinâmica de autodoação. Por isso é que aquele “dai e vos será dado” (Lc 6,38) não pode ser entendido sob a chave de um retributivismo mercantil, mas como uma “lei da física espiritual”. O amor de Deus e o amor do próximo são, por isso mesmo, o resumo de toda a lei moral, e como que dois lados da mesma moeda.

Como, porém, podemos eu e você vivenciar, na prática, este amor pelos irmãos de rua? Um pequeno passo que podemos dar é olhar nos olhos da pessoa que nos aborda para pedir algum trocado e perguntar-lhe o seu nome. Ao entregarmos a comida ou o trocado que pudermos dar (ou até mesmo ao explicar que não podemos ajudar naquele momento), poderemos então chamar a pessoa pelo nome (cf. Is 43,1) – e veremos muitas vezes a alegria que isso lhe traz. Também podemos fazer doações espontâneas a instituições de nossa confiança – o famoso “Chá do Padre” no Largo São Francisco, por exemplo, atende diariamente milhares de pessoas.

Aproveitemos, então, do frio do inverno para aumentar nossa ajuda aos irmãos carentes – e felizes seremos quando, ao final desta nossa vida, pudermos ouvir de Nosso Senhor: “Vinde, benditos de meu Pai, tomai posse do Reino que vos está preparado desde a criação do mundo, porque tive fome e me destes de comer; tive sede e me destes de beber; era peregrino e me acolhestes; nu e me vestistes; enfermo e me visitastes; estava na prisão e viestes a mim” (Mt 25,34-36).

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