O Estado é laico, não laicista

O escritor peruano, liberal e não crente, Mario Vargas Llosa, diante da polêmica sobre o uso do véu islâmico na França, escreveu para o jornal El País, de Madri em junho de 2003: “Requisito primeiro e irrevogável de uma sociedade democrática é o caráter laico do Estado, sua total independência em relação às instituições eclesiásticas. […] O Estado laico não é inimigo da religião; é um Estado que, para resguardar a liberdade dos cidadãos, desviou a prática da esfera pública para o âmbito que lhe corresponde, que é o da privada” (A Civilização do Espetáculo – uma radiografia de nosso tempo e da nossa cultura/Mario Vargas Llosa: tradução Ivone Benedetti – 1ª edição – Rio de Janeiro. Objetiva, 2013).

A lembrança deste artigo de Vargas Llosa suscita duas características que se faz necessário esclarecer sobre a laicidade do Estado e o laicismo vigente em nossa sociedade: a participação dos crentes nos debates sociais; e a presença da religião na esfera pública.

Entende-se por laicidade a distinção entre a esfera política e a religiosa. Chama-se “Estado laico” aquele que não é confessional, isto é, que não adotou – como era comum em séculos passados – uma religião como oficial do Estado [como ainda acontece em países islâmicos]. A Igreja Católica considera essa distinção como um “valor adquirido e reconhecido pela Igreja, e faz parte do patrimônio da civilização.” (Compendio da Doutrina Social da Igreja – CDSI 571). No Estado laico, há a valorização e o respeito ao fator religioso.

No Brasil, essa distinção – entre esfera política e religiosa – é uma realidade constitucional desde a publicação do Decreto no 119-A (revogado pelo Decreto no 11/1991 e revigorado pelo Decreto no 4496/2002, portanto, ainda em vigor), de autoria de Rui Barbosa, em 7 de janeiro de 1890, ainda no período provisório da recém-proclamada república. Ou seja, a participação dos católicos nos debates públicos e a presença da Igreja Católica e de outras religiões na esfera pública está resguarda pelo chamado Estado laico há pelo menos 130 anos.

Logo, é risível a postura daqueles que invocam o Estado laico para silenciar os cristãos em assuntos de interesse público. Ignoram o conceito republicano e o da Igreja Católica sobre a laicidade do Estado e, ainda, os fatos históricos. Esquecem ou ignoram o contributo ético do Cristianismo para a sociedade.

Ora, a laicidade do Estado não significa que os católicos devam voltar a viver nas catacumbas e, assim, não participar dos debates públicos em busca do bem comum. É essa postura que a Igreja Católica tacha de laicismo e defende o contrário como exigência da liberdade religiosa.

Participar do debate civil é um direito; não uma concessão que se faz aos cristãos. “Os argumentos da Igreja, em geral, estão relacionados a razões públicas e não religiosas, e esses argumentos devem ser levados em consideração. A Igreja tem o direito de se manifestar da mesma forma que o faz a imprensa, as universidades, os sindicatos etc.”, como bem observou Ives Gandra Martins Filho, ex-ministro do Tribunal Superior do Trabalho (TST).

laicismo, como ensina São João Paulo II, é “uma ideologia que leva gradualmente, de forma mais ou menos consciente, à restrição da liberdade religiosa até promover um desprezo ou ignorância de tudo o que seja religioso, relegando a fé à esfera do privado e opondo-se à sua expressão pública” (Discurso ao primeiro Grupo de Bispos da Conferência Episcopal da Espanha em visita Ad Limina Apostolorum., em 24 de janeiro de 2005).

O problema, obviamente, não se refere ao “requisito primeiro e irrevogável da sociedade democrática que é o caráter laico do Estado”, como observou Vargas Llosa, mas, sim, a atitude daqueles que professam um laicismo intelectualmente fechado e antidemocrático. Um laicismo pseudo-iluminista que, na verdade, esconde uma ideologia que hoje pretende se impor como a única admissível. É o “tribunal da inquisição laica”, que fustiga, ridiculariza e “excomunga” todos os que não comungam com esse pensamento (Palestra com Estudantes: Laicidade e Laicismo, julho de 2005. Padre Francisco Faus). Isso vale para os crentes e não crentes, e em diversas matérias da vida em sociedade.

Logo, ainda faz eco o que disse o Papa Bento XVI aos membros da Assembleia-geral das Nações Unidas, em 2008: “É inconcebível que crentes devam suprimir uma parte de si mesmos – a sua fé– para serem cidadãos ativos; nunca deveria ser necessário renegar Deus para poder gozar dos próprios direitos”.

No entanto, cabe a cada geração manter as conquistas das gerações passadas e, mais, elevá-las a patamares ainda não conquistados. Cabe aos cristãos pôr democraticamente os meios, na medida das suas possibilidades pessoais, para que as legislações tenham como fundamento o direito natural. Não é coerente que um cristão relegue completamente as expressões de sua fé à mais estrita privacidade e torne-se indiferente as necessidades do próximo, porque a vocação cristã é apostólica, e esta exige dar testemunho público.

A cultura democrática não é feita apenas de instituições e leis. É feita também e sobretudo da convicção arraigada entre os cidadãos de que esse sistema é o melhor possível e da vontade de fazê-lo funcionar. Isso não pode ser realidade sem valores e paradigmas cívicos e morais profundamente ancorados no corpo social, algo que, para a imensa maioria dos seres humanos, é indistinguível das convicções religiosas, como foi capaz de reconhecer até mesmo um não crente, o escritor Mario Vargas Llosa.

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