O papel do homem público católico em face do aborto

O fatídico ano de 2020 foi marcado por uma terrível ameaça à vida, por causa do alastramento de uma doença desconhecida e mortal. O mundo inteiro interrompeu suas atividades, assustado em face da morte.

De forma infelizmente curiosa, 100 anos antes o mundo iniciava outro tortuoso caminho de tristeza e morte: na então chamada União Soviética se aprovava, em novembro de 1920, a primeira lei no mundo que autorizava o aborto.

Muito embora naquela época a Igreja Católica tivesse uma imensa influência política pelo mundo, naquela terra abandonada à sua sorte pelo comunismo tirânico, pouco ou quase nada podia fazer para impedir que inocentes almas fossem mortas em seus ventres maternos.

A exemplo da lei soviética, o mundo foi, passo a passo, perdendo o horror pelo aborto e a prática foi se tornando legal.

Ao entrar no ordenamento jurídico, seja por meio de decisões judiciais, seja por causa de leis que assim determinaram, na quase totalidade dos casos, manifestações públicas demonstravam a insatisfação do povo em geral. Assim, o aborto quase sempre foi legalizado a despeito de uma regra democrática, ou seja, contra a vontade da maioria popular.

Embora houvesse muito a escrever, não é objetivo deste artigo relatar como foram os subterfúgios utilizados para que a prática abortiva se tornasse viável juridicamente, contrariando o direito natural à vida. Por outra, a intenção aqui é analisar o tema sob o prisma dos ensinamentos e da doutrina católica.

E é justamente ao povo católico que esse texto se destina, pretende-se mostrar que há uma incompatibilidade entre dizer-se católico e, ao mesmo tempo, apoiar o aborto. Ao final, procurar-se-á entender qual deve ser a posição do homem público em relação ao tema.

A base para condenar o ato é simples e se encerra no quinto mandamento da Lei de Deus, “não matarás”. A partir desse princípio, sob o tema do aborto, inúmeros foram os santos e doutores da Igreja ou ainda profetas no Antigo Testamento1 que condenaram a prática de matar os filhos no ventre materno.

Ensina Santo Agostinho, interpretando o Antigo Testamento, que a alma já está presente desde o seio materno2. São Jerônimo, em sua Carta a Eustochium, condena expressamente a prática daquilo que ele chama de “parricídio de seus próprios filhos não nascidos.”3 Acompanha-o outro padre da Igreja, São Basílio, ao afirmar que “qualquer pessoa que, propositadamente destrói um feto, incorre nas penas de assassinato. Nós não especulamos se o feto está formado ou não formado”4.  

A Igreja Católica, já no primeiro século, condenava o aborto como sendo um ato imoral, mas foi no concílio de Elvira, nos anos 300, que ela determinou a excomunhão para quem praticasse o ato, independentemente do estágio em que estivesse desenvolvido o feto.

Muito embora ao longo dos séculos a Igreja tenha debatido no campo científico e filosófico o momento exato em que a alma e o embrião se encontram, ela nunca hesitou na condenação moral do aborto voluntário.

Em matéria de sanção, o Código de Direito Canônico de 1983 estipula no cânon 1398 a excomunhão latae sententiae, ou seja aquela que ocorre tão logo o ato seja realizado, para todo aquele que participar ou concorrer para a realização de um aborto.

Em um documento5 redigido em 2004 pelo então Cardeal Joseph Ratzinger, que no ano seguinte se tornou Bento XVI, aprendemos que as personalidades políticas católicas que fazem campanha ou votam a favor do aborto deveriam ser informadas por seus padres sobre o ensinamento da Igreja e ainda, abster-se de receber a Sagrada Eucaristia, sob pena de se verem recusados ao Sacramento. O documento fazia menção especialmente ao mesmo Código acima citado, no cânon 915, que estipula que “não sejam admitidos à sagrada comunhão os excomungados e os interditos, depois da aplicação ou declaração da pena, e outros que obstinadamente perseverem em pecado grave manifesto”.

O bispo de Cuenca, Espanha, Dom José Guerra Campos, publicou uma carta pastoral6 com ensinamentos preciosos a respeito do aborto. Declarando que todo católico tem a obrigação de “enquanto a lei (do aborto) durar, ela tem que ser denunciada, repudiada e exigida a sua revogação”. O silêncio, afirma o religioso, ajuda a encobrir uma verdadeira matança de inocentes.

Ensina ainda o prelado que a cooperação nos abortos legalizados é gravemente imoral, pois “cumpre obedecer antes a Deus que aos homens”. Ao tratar da responsabilidade do político que promove tal lei, ensina o espanhol:

“Os católicos que favorecem o aborto em postos de autoridade e de função pública, na medida em que cooperam para a realização de um aborto concreto e efetivo, incorrem evidentemente na mesma excomunhão. Às vezes não se poderá determinar se a ação das autoridades recai em um aborto concreto e efetivo, ou se se restringe a fomentar possibilidades e facilidades gerais para sua concretização. Neste caso será duvidosa a excomunhão; mas não é duvidosa sua tremenda responsabilidade moral, ordinariamente maior que a dos executores, nem é duvidoso que merecem reprovação pública e penas espirituais, embora não se contraiam automaticamente”.

E ainda: “Os que implantaram a lei do aborto são autores conscientes e contumazes do que o Papa qualifica de ‘gravíssima violação da ordem moral’, com toda sua carga de nocividade e de escândalo social”, concluindo com os seguintes dizeres: “Os católicos em cargo público, que promovem ou facilitam com leis ou atos de governo — e em todo caso protegem juridicamente — a prática do crime do aborto, não poderão escapar à qualificação moral do crime do aborto, não poderão escapar à qualificação moral de pecadores públicos. Como tais terão de ser tratados — particularmente no uso dos Sacramentos — enquanto não repararem segundo suas possibilidades o gravíssimo mal e escândalo que produziram.”

À leitura dos ensinamentos acima demonstrados, não resta dúvida que o político católico que, tendo votado a favor de uma lei permissiva do aborto, incorrerá em gravíssimo erro moral toda vez que uma interrupção voluntária da gravidez se der, tendo como amparo o regramento por ele aprovado. Há quem diga que, nesse caso, ele incorre em excomunhão. Não parece haver uma definição clara sobre essa pena para este caso específico.

Se por um lado o Código de Direito Canônico afirma que “aquele que procura o aborto” é sancionado com a excomunhão, por outro não é possível inferir daí, automaticamente, que aqueles que proporcionaram tal ato de forma indireta também seriam responsáveis. As leis penais da Igreja são, via de regra, aplicadas de forma restritiva e não amplificada; então, a interpretação que muitos fazem é que não há excomunhão para este caso, muito embora haja, sim, um gravíssimo erro moral acompanhado do pecado de escândalo, que, por eles mesmos, impedem o comitente de receber a maioria dos sacramentos, sem antes ter se arrependido e confessado.

Recentemente, um século após o mundo comunista ter implantado a ideia, no limiar do ano que findou e na aurora deste que se inicia, políticos da Argentina e da Coréia do Sul, respectivamente, aprovaram leis que autorizavam o mesmo aborto.

Houve católicos no meio desses políticos que votaram tais leis? Houve quem lhes trouxesse de forma clara a condenação pela qual incorrerão cada vez que um aborto for efetivado no amparo legal que criaram?

Mais ainda, haverá católicos dispostos a seguir os ensinamentos de Dom José Guerra Campos, e seguirão firmes no combate e na luta contra aquilo que o Papa Francisco classificou como assassinato intrauterino?

Que Nossa Senhora, Mãe do Salvador, tenha piedade do mundo por este século de mortes, perpetradas contra os mais indefesos e inocentes dos seres humanos e nos faça sempre prontos a combater este, que é certamente um dos principais erros do mundo moderno.

Miguel da Costa Carvalho Vidigal é advogado, doutorando em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP e diretor da União dos Juristas Católicos de São Paulo

Notas

1 Que ela não fique como um aborto que sai do ventre de sua mãe, com a carne já meio consumida (Números, 12, 12)

2 Em Vós eu me apoiei desde que nasci, desde o seio materno sois meu protetor (Sl, 20,6)

3 Carta a Eustochium, 22:13-14

4 Carta a Amphilochius, 188:2, 8

5 https://www.tldm.org/news7/ratzinger.htm – Worthiness to Receive Holy Communion. General Principles

6 Carta Pastoral, Diocese de Cuenca, Boletim Oficial, 7/1985

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ROGÉRIO PIRES
ROGÉRIO PIRES
3 anos atrás

EXCELENTE ARTIGO DO DR. MIGUEL DA COSTA VIDIGAL, SÃO VERDADES ESQUECIDAS PELOS CIDADÃOS CATÓLICOS. SÃO ARGUMENTOS
PARA DISCUTIR O TEMA QUE TANTOS CATÓLICOS IGNORAM.
PARABÉNS.

Guilherme
Guilherme
3 anos atrás

É UM BOM ARTIGO, MAS SÓ TEVE UM PEQUENO ERRO QUE FOI FALAR QUE OS POLÍTICOS DA COREIA DO SUL APROVARAM LEIS A FAVOR DO ABORTO, DE FATO O ABORTO FOI DESCRIMINALIZADO LÁ, MAS FOI A SUPREMA CORTE COREANA QUE CONSIDEROU A LEI CONTRA O ABORTO QUE ESTAVA EM RIGOR DESDE A DÉCADA DE 50, INCONSTITUCIONAL POR 7 VOTOS A 2, O CONGRESSO AINDA NÃO FEZ A REVISÃO DA LEI, ENTÃO HÁ UMA ESPERANÇA DE QUE O CONGRESSO APROVE A LEI DO BATIMENTO CÁRDIACO E NÃO OBRIGUE OS MÉDICOS A FAZEREM O ABORTO