A dimensão espiritual das leis

Sergio Ricciuto Conte

Verdade impopular: apesar dos esforços contrários, as leis humanas conservam traços de uma transcendência que não se apaga e de uma metafísica que não nos deixa. E ai daquele que tenta, pelas razões mais respeitáveis, tomar o Direito à semelhança dos tecnicismos despojados de vida interior, sem subjetividade, numa espécie de militância da letra morta que vai além do bom emprego da Moral. Erro fatal, capaz de transformar a justiça em tirania.

Ainda que se cogite em transcendência ou em abordagem metajurídica, faz tempo que se admite, sob diversos aspectos abertos à razão natural, uma dimensão espiritual do Direito.

Montesquieu, por exemplo, ao tratar dos fundamentos sociais do Direito, também tratou da base espiritual das leis.

Isso porque as leis legitimam comportamentos. Em sendo assim, não podem prescindir dos pilares espirituais, sob pena de, mutilando as bases sobre as quais a norma se assenta, deformarem-lhe profundamente o sentido original, com o risco maior de consagrar leis injustas e condutas inaceitáveis. 

Especialmente importante é, logo de início, valorizar o conceito de dignidade. A filosofia grega, absorvida pela Igreja e incorporada ao Cristianismo, não a conhecia, tal como nós. Sabia bem o que era honra, normalmente ligada à ética ou código do guerreiro. Da dignidade falavam os romanos, mas não do modo como hoje conhecemos e valorizamos. A antiga dignitas significava outra coisa, mais voltada ao plano social, ao prestígio, à boa fama, à honra.

Com o Cristianismo, a dignidade passa a despontar como influência poderosa no Direito e, hoje, é um princípio fundamental presente na maioria dos sistemas legais. O que tem muito a ver com a ideia central do Direito Natural de que Deus governa o universo.

Ainda que repleta de imperfeições, quando orientada para o Direito, a criação humana tem que aspirar ao que é firme, valioso, perfeito. A busca da perfeição nessa obra é dever do justo, pois a ordem natural é perfeita. E de sua perfeição exala a graciosidade da beleza. É certo dizer, ao capricho dos aforismos, que Deus é a própria Beleza em que reside a Justiça.

Uma lei a que falte integridade, sobre confusão e na qual se veja mal o luzir do eterno é, portanto, menos bela, menos justa, menos lei. Faltam-lhe a exuberância unitária do Ser, o respeito à proporção (ou harmonia) do Bem e, principalmente, a abertura ao brilho da Verdade.

Temos, historicamente, não poucos exemplos de leis iníquas, feiura moral, desgraça jurídica: o sistema nazista (e o holocausto dos judeus), o apartheid na África do Sul, as regras raciais segregacionistas nos Estados Unidos. 

Conhecer bem a Palavra de Deus é, em função disso, imprescindível. No caso específico dos católicos, conhecer também a Tradição, a doutrina, o Catecismo e os documentos oficiais da Igreja, muitos diretamente orientados para a técnica jurídica. O conhecimento firme da literatura e dos fatos históricos também é outra arma poderosa à disposição do servo do bom Direito. 

Todos esses predicados se juntam na eterna luta para limitar os poderes e fazer justiça, dirigida especialmente aos mais desvalidos. Acaso serão essas duas posturas outra coisa senão o estabelecimento no mundo, à medida do possível e sem pretensões desmedidas, da verdade e dos valores do Reino dos Céus? 

Se os bons não atuarem com justa firmeza, calibrada pela misericórdia, o mal reinará, a sociedade ficará à deriva. Para tal e tanto, além do estudo contínuo, da busca da excelência acadêmica, do amor à ciência, hão de ser perseverantes na oração – porque o cristão sem oração é como o lavrador sem enxada. 

Paulo Henrique Cremoneze é advogado; mestre em Direito Internacional pela Universidade Católica de Santos (SP); especialista em Direito do Seguro pela Universidade de Salamanca, na Espanha; pós-graduado em Especialização Teológica pela Faculdade de Teologia Nossa Senhora Assunção; e vice-presidente da União dos Juristas Católicos de São Paulo (Ujucasp).

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