Confesso que levei algum tempo para entender essas palavras de Jesus: “Deixem vir a mim as crianças e não as impeçam; pois o Reino dos Céus pertence aos que são semelhantes a elas” (Mt 19,14).
Acredito ter entendido alguns anos atrás, quando conversava com um monge trapista na abadia Nossa Senhora do Novo Mundo, em Campo do Tenente, interior do Paraná. Perto da portaria, uma criança dormia tranquilamente no colo da mãe. Um sono leve, que transmitia paz.
O monge, homem bem idoso, americano radicado no Brasil há muito tempo, combatente e herói da Segunda Guerra Mundial, considerado santo por sua comunidade, mais de 50 anos de sacerdócio e de vida monástica, disse-me: “Paulo, eu gostaria de me entregar a Deus com a mesma confiança que aquela criança se entrega à sua mãe”.
Aquelas palavras atingiram meu coração como flecha em brasa e, imediatamente, me remeteram às do Evangelho segundo Mateus.
Um homem de grande fé, vida contemplativa, diretor espiritual de muitos, rico em sabedoria e oração, um ícone vivo, encantou-se com a confiança que a criança tinha em sua mãe. Um homem que havia passado por tanta coisa e de tão larga vida espiritual, encantou-se com a entrega plena e absoluta, irrestrita, incondicional, confiante daquela criança.
Ele, que experimentou tanta coisa – até uma grande guerra – e que há muito optou vigorosamente pelo caminho espiritual, monástico, viu na criança uma entrega que ele próprio ainda não conseguiu oferecer: a entrega confiante.
A confiança é o diadema da fé. Falamos o tempo todo que confiamos em Deus, mas a triste verdade é que confiamos com alguma desconfiança e nos valemos demais dos meios do mundo. Temos fé, mas nem tanto. Confiamos, mas não plenamente. Resultado? Nós não nos entregamos e, por isso, não nos convertemos integralmente.
A criança entrega-se aos seus pais plena e incondicionalmente. Depende deles. Dorme em seus braços e se põe à mercê dos seus cuidados.
Não fez isso o próprio Senhor ao se deixar cuidar por Maria e José? Esquecesse Maria de amamentá-lo ou deixasse José de protegê-lo, e o plano da Salvação teria tomado outro rumo. Cresceu sob esses mesmos cuidados, confiando em seus pais, ouvindo-os e cumprindo suas ordens.
Deus se fez homem e veio ao mundo como um neném indefeso, entregando-se aos cuidados de mãe e pai. O próprio Deus nos mostrou a dinâmica da entrega, mas infelizmente dela descuidamos por nossa obstinação pela própria vontade.
A criança – salvo em casos muito acidentais e tristemente extraordinários – confia em seus pais, entrega-se, repousa tranquilamente com a cabeça encostada, curvada.
Isso é exemplo de entrega absoluta e é isso, ouso pensar, que o Senhor quer de nós: a entrega confiante, plena, incondicional, que as crianças conseguem e, nós, não.
O calculismo que nos atinge em dado momento da vida atrapalha a entrega, ancila a inocência e encobre o entusiasmo.
Jesus não nos pediu imaturidade ou aqueles comportamentos próprios da infância, os caprichosos e as brincadeiras. Não. O que Ele nos pediu foi e é a incondicionalidade da entrega, a pureza na fé, a confiança em Sua proteção.
Sim, as crianças nos ensinam como ter e viver a fé.
Sabem quem também pode nos ajudar a entender melhor essa entrega confiante? Os cachorrinhos.
Sim, isso mesmo, os cachorrinhos. Aqueles que a mulher suplicante lembrou ao Senhor: “Até os cachorrinhos comem das migalhas que caem da mesa de seus donos” (Mt 15,21-28).
Não sou veterinário nem pesquisador da vida animal. Nada sei, portanto, sobre o comportamento dos bichos, de selvagens aos domésticos. Sou apenas o dono atencioso de um cachorrinho e percebo como ele fica “triste”, se é que assim se pode dizer, quando saio de casa e “alegre”, “eufórico”, quando chego.
O tempo de separação pode ser curto ou longo. A reação será sempre a mesma: rabinho abanando euforicamente, latidos, pulos, lambidas. Tristeza na separação. Alegria incontida no reencontro. Dormem em nossas pernas confiando que não lhes faremos mal algum, mas, antes, deles cuidaremos. Sabem, ainda que instintivamente, que somos seu socorro e sua fonte de vida.
Quisera eu assim me comportar diante de Deus. Quisera eu me contentar com as migalhas que caem da mesa do meu Senhor, entristecer-me profundamente nos momentos de distanciamento e me alegrar a ponto de cantar, dançar, vibrar, de converter pranto em dança – como fez o grande rei Davi –, a cada reencontro.
Longe de mim o erro do mundo pós-moderno de confundir respeito e amor pelos animais, partes da Obra da Criação, com idolatria e ato de contracultura. Não é o que pretendo ao usar cachorrinhos como exemplo. O que pretendo é mostrar que o comportamento dos cachorrinhos deve nos fazer refletir sobre o nosso próprio, naquilo que interessa: a fidelidade ao dono.
Crianças que confiam plenamente em seus pais e cachorrinhos que se entregam aos cuidados dos seus donos são exemplos absolutamente simples, muito visíveis, metafóricos e paradoxalmente concretos, de como nós, adultos, homens e mulheres de razão, devemos nos relacionar com Deus. Há nesses comportamentos algo de catequético que pode nos ter especial valor.
Quem não se entrega tranquilamente ao sono profundo, confiante, no colo do Senhor, não tem a alegria de um despertar aos primeiros raios do sol da verdade e da esperança. Dormirá sempre com algum receio e não despertará com aquela alegria absoluta, a que subsiste mesmo em meio a dor.
Paulo Henrique Cremoneze é advogado, mestre em Direito Internacional pela Universidade Católica de Santos (SP), e vice-presidente da União dos Juristas Católicos de São Paulo (Ujucasp).