Há muito que o tema do conhecimento de si povoa minhas reflexões. Muito aprendi a respeito dele com a Bíblia, os papas, os doutores da Igreja e os grandes santos doutrinadores, como os Padres do Deserto, Ambrósio de Milão, Agostinho de Hipona, Gregório Magno, Bernardo de Claraval, Teresa D´Ávila, Tomás de Aquino e Edith Stein, entre outros. A doutrina católica é muito rica também neste assunto.
Penso que o conhecimento de si tem uma espécie de inimigo íntimo: o autoengano. Não só prejudica o conhecimento íntimo como a vivência da fé. É ele que a banaliza, esvazia o exercício pleno dos sacramentos, acomoda a caridade e dilata os espaços dos vícios e da tibieza. Rasgar o véu do autoengano é imprescindível para a busca perpétua da unidade com Deus, resgatar a semelhança perdida com o pecado original e abrir o coração para a Verdade.
Por causa do autoengano, nós nos acomodamos e achamos normal a condição de pecadores. Aceitamos com acovardada irresignação as injustiças do mundo, sem buscar – ao menos além das palavras de boa vontade – a santidade a que o Senhor nos convidou e que a Igreja considera vocação universal. O autoengano é a sombra da alma e o verniz sobre o coração.
As perguntas que não calam e desafiam a fé e a razão: 1) Como somos capazes de nos autoenganar? 2) Por que o fazemos tanto?
Sinceramente, ainda não sei as respostas e me incomoda muito saber que eu engano a mim mesmo faz tempo, talvez desde a segunda infância. Não pretendo definir o autoengano (não aqui e agora), mas expor seu principal produto: a idolatria do ego, espécie de corolário dos pecados capitais, barro infecundo sobre o qual edificamos o castelo da consciência.
Fácil é ver o erro alheio e condená-lo. Difícil é encarar o espelho, enxergar a si mesmo e dizer com toda a sinceridade: sou um idiota. Saber-se miserável, porém, é libertador. Funciona como uma espécie de nova conversão. Melhor, uma metanoia.
Sim, sou bem menos nobre de espírito, importante e interessante do que pensava ser. Sim, não sou um bom católico, mas tantas vezes me aproximo de ser um neofariseu. Imagino uma pedra dentro de um lago. Se quebrada, seu interior estará seco. A pedra sou eu. A água, o Cristianismo.
Ó, dura condição! Falar do Amor, defender a Verdade, mas ainda não se deixar molhar pelos dois, que em verdade são um.
Esse erro não faz de mim um hipócrita – espero em Deus –, mas um protagonista do autoengano.
Romper esse dique é maravilhoso. Ser promotor de justiça, advogado e juiz de si mesmo. Tese, antítese e síntese do próprio caráter. Proferir a sentença de sua vida. Se veraz, a conclusão é óbvia: nem mesmo uma folha seca deixará de ser levada ao vento por sua (minha) causa.
Porque os ponteiros do relógio não estão nem aí para cada um de nós. E o valor que nos damos é inversamente proporcional ao que de fato temos.
Agora – que bem sei o que é autoengano e o reconheço – entendo o “poverino de Assisi” quando disse: “Senhor, vós sois o Eterno, o Todo-poderoso. E eu, um miserável vermezinho”. Entendo também o salmista: “Eu sou um verme, não um homem, o opróbrio das nações”.
Desmantelar a rede de autoengano que, para a idolatria do ego, tecemos por toda uma vida nos ajuda a escapar dos afetos desordenados. Não pensamos mais ser o que jamais fomos. Passamos anos obstinados querendo ser outra coisa, e, quando reconhecemos isso, descobrimo-nos finalmente, desnudados das capas douradas e vestidos com o que merecemos: os trapos.
Coisa terrível, mas bendita. Enxergar a si mesmo, honestamente, é a grande vitória e a preparação para um digno ocaso.
Paulo Henrique Cremoneze é advogado, mestre em Direito Internacional pela Universidade Católica de Santos, vice-presidente da União dos Juristas Católicos de São Paulo (Ujucasp).