Em junho deste 2024, celebramos o centenário de morte de Franz Kafha. Esse enigmático escritor austro-húngaro retrata tudo e todos de forma fantasmagórica. Basta pensar nas obras O Processo, O Castelo, A metamorfose. Os personagens, efetivamente, parecem espectros caminhado em meio a uma nebulosidade que não permite traçar com exatidão os contornos das coisas, das pessoas e dos fatos. O próprio enredo traz a imprecisão do tempo, do espaço e da complexa trama narrativa.
K é protagonista em O processo. Não tem origem, família nem história. Em uma determinada manhã, é visitado e detido por dois agentes policiais, sem qualquer razão explicável. Passa, então, a percorrer as páginas da obra acompanhado por uma densa nuvem burocrática, tão intricada e labiríntica, que nunca sabe exatamente o que deve fazer para provar sua inocência. De juiz em juiz, de advogado em advogado, de tribunal em tribunal, aparece cada vez mais inseguro, incerto e perdido. Avança irrequieto, nadando em um mar espesso de névoa.
Em A metamorfose, Gregor acorda certa manhã transformado em um monstruoso inseto. Empreende esforços inauditos não apenas para tentar entender como isso veio a ocorrer, mas sobretudo para adaptar-se a essa situação insólita. Também neste caso, não existem explicações e o protagonista deve conviver consigo próprio convertido em uma espécie de barata gigante. Caricatura abjeta que retrata condições de trabalho igualmente abjetas. O protagonista encontra-se perseguido por dívidas contraídas pelos pais e, para pagá-las, vê-se metamorfoseado nesse inseto que, a qualquer momento, pode ser esmagado.
Em O castelo, repete-se a letra K para designar um certo agrimensor. Este é requisitado por um conde, também ele fantasmagórico, para prestar-lhe seus serviços. Têm início, então, as vãs tentativas de K para entrar na morada do nobre senhor. Por mais esforços que faça, não consegue chegar a esse edifício, cuja localidade e contornos são sempre indefinidos. O agrimensor se vê do lado de fora do prédio, sem saber ao certo o que fazer e com quem falar. Permanece na vila como um errante que não atenta com a forma de penetrar o castelo, o qual, na verdade, paira acima das nuvens inexpugnável.
Entra em cena a Doutrina Social da Igreja (DSI). Inútil dizer que os três personagens citados constituem figuras que, após um século, habitam os porões, periferias, sertões e fronteiras da sociedade. Rostos e nomes caros à DSI, a qual, em seus documentos, procura resgatar suas trajetórias históricas de um anonimato que, além de violar os direitos humanos, atenta contra a dignidade da pessoa humana. Franz Kafha, entre outros, intuiu em profundidade as tragédias dos tempos contemporâneos.
Tragédias que se abatem sobre os ombros dos pobres e vulneráveis da terra. Mais do que nunca, seguimos envolvidos em espessa e som- bria neblina, na qual as narrativas e ideologias distorcidas, em lugar de informar, confundem a população em geral, e cada cidadão e cidadã em particular. Passado o 2º turno das eleições municipais, continuamos com os princípios da DSI a nos fornecer luzes para nos iluminar. Ela não apresenta nomes ou partidos, e sim critérios éticos que podem sempre nos orientar na busca pelo bem comum.