A Igreja, em toda a América Latina, está iniciando um processo de retomada das propostas e orientações do Documento de Aparecida (DAp), que completa 15 anos em 2022. É um texto riquíssimo, mas nem sempre recebeu a devida consideração. Em muitos aspectos, pode ser considerado uma “antecipação” do pontificado do Papa Francisco, que coordenou a equipe de redação do documento.
Logo em seu início, o documento retoma um pensamento de Bento XVI, na Deus caritas est (DCE, 1): “Não se começa a ser cristão por uma decisão ética ou uma grande ideia, mas pelo encontro com um acontecimento, com uma Pessoa, que dá um novo horizonte à vida e, com isso, uma orientação decisiva” (DAp, 12).
Francisco escreveu que nunca se cansará de repetir essas palavras de Bento XVI (Evangelii gaudium, EG, 7). De certa forma, representam uma fórmula que permite integrar a mais rigorosa ortodoxia com o maior arrojo missionário e renovador. Quem está ancorado em Cristo não trai seus ensinamentos nem se acomoda em posições consolidadas.
Meu trabalho profissional me proporciona oportunidades de encontrar cristãos e não cristãos das mais diversas posições ideológicas e convicções morais. Nesses contatos, observei que as pessoas sinceras podem concordar ou não com as ideias de um determinado cristão, porém – quando esse cristão vive orientado por seu encontro pessoal com Cristo – não conseguem deixar de respeitar e valorizar seu testemunho pessoal.
Mais importante ainda: as pessoas que vivem essa companhia de Cristo, que experimentam esse encontro como um acontecimento decisivo em suas vidas, são totalmente conscientes dos perigos do mundo, mas absolutamente destemidas. Estão conscientes dos erros das ideologias, mas não se deixam determinar pelos embates ideológicos. Conhecem as mazelas dos políticos e da economia “que mata”, mas lutam pela justiça sem perder o ânimo e a alegria. Mesmo antes da pandemia, sabiam que a morte é como uma espada sempre próxima do pescoço dos vivos, mas isso não lhes tira a serenidade e o encanto da vida.
O Padre Julián Carrón, atual responsável mundial pelo movimento Comunhão e Libertação, dá um exemplo interessante para mostrar essa posição humana. Com seus pais, uma criança visita a Disneylândia. Tudo lhe parece maravilhoso e divertido. De repente, se perde dos pais. Fica aterrorizada e tudo que lhe encantava e divertia antes parece agora assustador e perigoso.
Assim somos nós quando perdemos a consciência desse encontro que deu uma orientação decisiva à nossa vida. É impressionante, contudo, a facilidade com que o esquecemos e nos deixamos determinar por outras coisas. Quantos conflitos ideológicos, quanta divisão entre irmãos dentro da Igreja, quanta falta de amor e de compromisso social, quantos falsos moralismos, quanto medo, sofrimento e dor, quanta depressão e solidão decorrem desse esquecimento!
As maiores verdades frequentemente são tão evidentes que nos parecem óbvias. Dar o evidente por óbvio, no entanto, é o primeiro passo para se perder a razão. Dar nosso encontro com Cristo por óbvio é uma das grandes ameaças ideológicas de nosso tempo.
Que a retomada do Documento de Aparecida nos ajude a manter viva a consciência desse encontro – e nos ajude a viver a alegria e o compromisso dos discípulos missionários.
Francisco Borba Ribeiro Neto é coordenador do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP.