Purificação da religiosidade

O tempo da Quaresma nos convida a uma profunda revisão de nossa vida, tendo à nossa frente os inícios da nossa fé: a graça imensa do Batismo, as promessas batismais e a profissão da fé católica. A este início é preciso retornar muitas vezes ao longo da vida para fazer a “memória” daquilo que somos e para reafirmar, com renovada generosidade, nossa constante conversão a Deus.

A passagem do Evangelho que fala da expulsão dos vendilhões do templo (cf. Jo 2,13-25) nos é proposta no 3º Domingo da Quaresma e tem um significado simbólico extraordinário. Jesus entra no templo de Jerusalém e vê todo tipo de comércio praticado ali para atender os peregrinos e desfrutar da ocasião para fazer negócios. Jesus expulsa os que faziam esse comércio: “Tirem isso daqui! Não façam da casa de meu Pai uma casa de comércio!” (v.16). Não se deve fixar a atenção apenas no gesto indignado de Jesus, mas também nas palavras ditas por Ele: O templo é a “casa de meu Pai”. Jesus identifica-se como o filho desse Pai, que é o Senhor do templo.

O significado simbólico do gesto de Jesus aparece melhor se lermos o texto à luz de toda a pregação de Jesus e da proposta quaresmal da Igreja. O evangelista observa que “estava próxima a Páscoa dos judeus” (v.13), ocasião em que muitos peregrinos iam a Jerusalém para viver a Páscoa na cidade santa e cumprir suas obrigações rituais no templo. Para celebrar a Páscoa, era necessário “estar purificados”, ou seja, fazer as “purificações” rituais. Ao narrar a Paixão de Jesus, São João observa que, quando levaram Jesus, já preso, à casa do governador Pôncio Pilatos, as autoridades do templo “não entraram no palácio, para não se contaminarem e poderem comer a Páscoa” (Jo 18,28). Entrar na casa de um pagão “contaminava” e tornava “impuro” quem o fizesse. E seria necessário “purificar-se” novamente, para celebrar a Páscoa.

Assim, a “purificação do templo” feita por Jesus, antes da Páscoa, pode ser interpretada como uma necessidade que vai além da ação ritual e se refere à “purificação da religião” e da religiosidade. O templo, com todo o cerimonial e ritos agrados, concretizava, de alguma maneira, a religião e a prática da religiosidade. Jesus vai além dos ritos e práticas cerimoniais, que podiam ser praticados mesmo sem a conversão do coração e sem abandonar toda sorte de desonestidades e idolatrias. Ao fazer referência à “casa do meu Pai”, Jesus vai ao significado central e originário do templo e da religião, que é o reconhecimento da soberania de Deus e a vida agradável aos seus olhos de Deus mediante a humildade sincera, a obediência da fé e a prática dos mandamentos. Jesus repudia o “comércio” feito no templo, que representava um grave desvio de finalidade da religião e da prática da religiosidade, em que o homem instrumentaliza a religião (o templo) em função de seus próprios interesses.

No encontro com a mulher samaritana (cf. Jo 4,1-42), Jesus ensina que “os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e verdade; e são esses os adoradores que o Pai procura. Deus é espírito e os que o adoram devem adorá-lo em espírito e verdade” (v. 23-24). Assim, compreendemos melhor o que Jesus quis ensinar com o gesto da expulsão dos vendilhões do templo: era necessário purificar a religião e a prática da religiosidade desviada do seu verdadeiro sentido, para adorar a Deus “em espírito e verdade”.

Disso não se conclui que a religião e a prática religiosa consistam unicamente em atitudes “interiores”, sem repercussão na vida. Ao contrário. Essa poderia ser uma tentação para a fuga cômoda das implicações da verdadeira “adoração de Deus em espírito e verdade”. Jesus deixa claro, também na linha dos profetas do Antigo Testamento, que a religiosidade verdadeira não é apenas “espiritual” e voltada para Deus, mas também deve traduzir-se na vida social coerente, sobretudo na observância dos mandamentos da Lei de Deus.

Nossa prática religiosa deve tomar em atenção os primeiros 3 mandamentos, que se referem ao reconhecimento, adoração e obediência a Deus e ao abandono de toda forma de idolatria: “Não terás outros deuses além de mim” (Êx 20,3). Mas esse amor a Deus está inseparavelmente relacionado com o amor ao próximo, do qual tratam os outros 7 mandamentos da Lei de Deus. São Paulo recorda aos fiéis de Corinto que eles próprios são o “templo do Deus vivo”, que devem manter digno mediante uma vida santa.

A Quaresma, portanto, nos convida a avaliar e purificar o nosso “templo”, ou seja, nossa vida e nossa prática religiosa. Os temas da purificação, da conversão sincera a Deus e da prática genuína da fé aparecem ao longo de toda a Quaresma, como na missa do 2º Domingo: que seja purificado o olhar da nossa fé, para compreendermos melhor o Batismo que nos lavou e a graça que nos santificou.

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