São muitos os males e contradições presentes na sociedade e no mundo que constituem verdadeiros desafios para a Igreja e para os cristãos: desigualdades sociais injustificadas que condenam milhares de pessoas à pobreza extrema ao ponto de privá-las do mínimo necessário para a sua subsistência digna; o problema da fome que persiste, mesmo com excedentes produtivos; a cultura da morte, que todos os anos ceifa a vida de milhões de nascituros no ventre de suas mães ou que, nos dizeres do Papa Francisco, promove “a eutanásia de forma encoberta de doentes e idosos privados de cuidados”; as novas formas de escravidão provenientes da exploração do trabalho humano; o tráfico de pessoas; as migrações forçadas por conflitos étnicos, religiosos, políticos e que forçam famílias inteiras a abandonarem sua pátria e arriscarem a própria vida na busca de um presente e futuro melhores.
A recente Exortação Apostólica Gaudete et Exsultate, sobre a santid ade de vida a que todos os cristãos, indistintamente, são chamados, enfrenta esses temas na segunda parte do capítulo III e aponta como única possibilidade de resposta cristã a caridade que procede da misericórdia.
Citando o capítulo 25 do Evangelho de São Lucas, o Papa nos recorda no que consiste, na verdade, um dos alicerces da Doutrina Social da Igreja: a identificação de Jesus Cristo com aqueles que mais sofrem. “Eu tive fome e deste-Me de comer, tive sede e deste-Me de beber, era peregrino e recolhestes-Me, estava nu e deste-Me que vestir, adoeci e visitaste-Me, estive na prisão e fostes ter comigo”(Lc 25, 35-36).
Não poucas vezes nos dias atuais, devido às polarizações ideológicas facilmente perceptíveis no debate público, a preocupação da Igreja com os menos favorecidos vem sendo erroneamente percebida não mais como uma exigência intrínseca da bem-aventurança dos misericordiosos, mas como adesão ideológica ao marxismo.
Em meio a esse contexto ideológico e polarizado, encontramos dois extremos apontados pelo Papa como erros: um que concebe a santidade de vida apenas como uma questão meramente espiritual, contemplativa e de busca de sua própria redenção, por meio da busca da perfeição pessoal, da superação de defeitos e na defesa de alguns valores éticos – o que, sem dúvida, é importante – e outro que reduz a vida cristã às práticas de obras sociais, dissociando-as da necessidade de cultivar-se a vida interior e o relacionamento pessoal com Deus. O primeiro traz os riscos de encerrar o indivíduo em uma espécie de egoísmo espiritual e a consequente omissão com o dever cristão de transformar o mundo de modo a superar as injustiças; o segundo, o de transformar o Cristianismo em uma ONG, “privando-o daquela espiritualidade irradiante que tão bem viveram e manifestaram São Francisco de Assis, São Vicente de Paulo, Santa Teresa de Calcutá e muitos outros”.
O que o Papa propõe na Gaudete et Exsultate é uma integração da vida cristã em suas exigências de unidade vida com o Senhor (vida interior) com a prática das obras de misericórdia e de promoção da justiça, pois o amor a Deus nos remete, necessariamente, ao amor ao próximo. Oração e obras de misericórdia são exigências imprescindíveis e inseparáveis da santidade de vida.
“Quando encontro uma pessoa a dormir no relento, numa noite fria, posso sentir que este vulto seja um imprevisto que me detém, um delinquente ocioso, um obstáculo no meu caminho, um aguilhão molesto para a minha consciência, um problema que os políticos devem resolver e talvez até um monte de lixo que suja o espaço público. Ou então posso reagir a partir da fé e da caridade e reconhecer nele um ser humano com a mesma dignidade que eu, uma criatura infinitamente amada pelo Pai, uma imagem de Deus, um irmão redimido por Jesus Cristo. Isto é ser cristão! Ou poder-se-á, porventura, entender a santidade prescindindo deste reconhecimento vivo da dignidade de todo o ser humano?” (Gaudete et Exsultate, 98).