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Um perigo para nossas bolhas 

Para alegria de uns, mas tristeza de outros, a vitória de Donald Trump nas eleições dos Estados Unidos evidenciou uma crise no pensamento woke (“despertado”, termo usado para designar o progressismo radical norte-americano), que se considerava hegemônico e em inevitável ascensão. Vitórias eleitorais se devem a muitos fatores, mas os analistas, tanto democratas quanto republicanos, têm se debruçado sobre este fenômeno. Ele traz lições também para nós, brasileiros. 

A mentalidade progressista cresceu nos ambientes culturais norte-americanos, principalmente denunciando as contradições da cultura hegemônica. Por exemplo, como se considerar parte de uma sociedade livre e igualitária se as mulheres não podiam votar e eram preteridas no trabalho só por serem mulheres? Como falar em “sonho americano” se os jovens viam seus pais viverem uma vida considerada medíocre? Como falar em valores cristãos se a caridade não levava à acolhida e à tolerância com o diferente? 

O problema é que a crítica permitiu a superação de alguns problemas, mas criou outros. Muitas mulheres se sentiram incomodadas ao perceberem que a igualdade de direitos parecia sufocar a diferença objetiva entre elas e os homens. As novas gerações negavam os valores de seus pais, mas nem por isso se tornavam mais felizes. Quem não se moldava à mentalidade hegemônica continuava a se sentir vítima da intolerância e do cancelamento. 

A polarização e as bolhas ideológicas aumentaram o fechamento e o vanguardismo, dificultando cada vez mais o diálogo e a compreensão de quem pensa diferente. Nas bolhas, o que nos interessa é nos convencermos de que estamos corretos e não procurarmos uma verdade que corrija tanto a nós quanto ao outro. É uma estratégia que aumenta a coesão interna, faz-nos cada vez mais confiantes em nós mesmos, em nossos amigos e em nossos líderes – mas é perigosa em uma democracia, na qual sempre teremos que buscar o bem comum, que deve atender tanto às nossas reivindicações quanto às do outro. 

Muito voltados às bolhas woke, os democratas não conseguiram entender as demandas dos que não estavam nestas bolhas e foram perdendo eleitores. Pior, hoje têm dificuldade até mesmo em formular um projeto alternativo, que se mantenha fiel a seus valores, mas corrija os desvios e permita o diálogo com o eleitor não alinhado. 

Viver dentro da bolha e responder apenas a ela não é um defeito de um lado apenas do espectro ideológico atual. É um problema generalizado. Leva ambos os polos políticos ao extremismo e à perda de um bom senso realista. A crítica deixa de ser construtiva. Quem está na oposição se legitima criticando o governo. Quem está no governo vive tentando defender o indefensável. Em breve, as posições se inverterão, as críticas e as autodefesas mudarão, mas a busca por consensos que abram caminho para a construção do bem comum continuará difícil para todos. 

Entre os cristãos, o fenômeno é ainda mais doloroso, pois corrói a unidade que é sinal de Cristo entre nós. Além disso, inocula em nossos corações, não importa nossa posição partidária, o veneno do posicionamento ideológico que supera a busca pela Verdade. Pode nos dar a impressão de uma vitória momentânea, mas que será passageira, como a experiência norte-americana está mostrando. E, como admoesta o Evangelho (Mt 16,26), de que nos valeria ganhar o mundo inteiro, se perdêssemos a própria alma? O que daremos em troca de nossa alma? 

A crise do woke norte-americano é uma lição para todos nós, identifiquemo-nos ou não com ele. Quem pensa que está de pé, cuide para não cair (cf. 1Cor 10,12). 

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