Uma reflexão sobre o matrimônio

Não é novidade para ninguém que há várias décadas o matrimônio passa por uma profunda crise, em nosso País e em todo o mundo ocidental. É uma situação complexa, com muitos fatores e influências a serem levados em conta, mas uma questão que se impõe diz respeito ao amor entre maridos e mulheres. Onde está o amor? Será que o problema é a mera falta de amor?

Parece-nos que a questão não é simplesmente amar ou não amar – mas amar do modo certo. Pois não existe ser humano que não ame. Até mesmo o egoísta mais encarcomido ama: ele ama seu conforto, ama seus prazeres, ama seus gostos e interesses… Nesse sentido é que Santo Agostinho dizia que a vida humana bem orientada precisava de uma ordem nos amores (ordo amoris): amar as coisas certas, e segundo a ordem que cada uma delas merece.

Podemos dizer que existem basicamente dois tipos de amor: um amor que se volta para dentro, e outro que se volta para fora. O primeiro amor vive a vida para si, e busca antes de tudo, a própria excelência: a minha carreira, meus conhecimentos e qualidades, minhas experiências e diversões, meu tempo livre… O segundo tipo de amor vive a vida para o outro, e por isso almeja a excelência do outro: o bem-estar do outro, sua felicidade e realização. O primeiro amor é na verdade o egoísmo, e destrói o matrimônio; o segundo amor é a caridade, e ama o matrimônio, porque entende que a vida conjugal é uma das melhores escolas do verdadeiro amor.

Para aprender matemática, precisamos de um ambiente com explicações e exercícios, e precisamos praticá-los muitas vezes. Para aprender o amor-caridade, precisamos passar por situações que triturem o nosso egoísmo, que nos levem a entrar no ritmo do outro. É para isso que servem todos os pequenos (e grandes!) desafios da rotina de um casal, para proporcionar a um e outro a ocasião de sair de si próprio: o marido que espreme errado a pasta de dente, a mulher que demora para se aprontar… Quando vêm os filhos, o egoísmo de cada um é ainda mais triturado: o sono fica prejudicado, não se tem mais muitos momentos para os dois…

Tudo isso está muito bem: afinal, o egoísta que acredita que o mundo gira em torno de si não é apenas “chato” – ele está profundamente equivocado sobre o mundo real, e a vida conjugal lhe serve como lembrete constante desta verdade. Mas logo surge uma outra questão: se eu não sou o centro do universo, meu cônjuge também não é! Por que eu deveria viver minha vida em doação a ele?

De fato, nem você nem seu cônjuge são o centro do universo ou a fonte de sentido e de felicidade da vida. Esta fonte é Deus – mas Deus é caridade, é um transbordamento de amor que se doa ao outro: por isso, quem ama é nascido de Deus, e quem não ama, não conhece a Deus (cf. 1Jo 4, 7-8). É isso que Jesus queria dizer quando afirmava que o primeiro mandamento (de amor a Deus) é “semelhante” ao segundo (de amor a próximo).

Aqui nos aproximamos de uma resposta à crise do matrimônio de que falávamos no início. Vivemos sim, num mundo com cada vez mais divórcios e famílias feridas – e vivemos também num mundo com cada vez menos amor a Deus, pois quem ama a Deus segue seus mandamentos (cf. Jo 14, 15). Num mundo que vai rejeitando Deus e seus mandamentos como “opressores” e “ultrapassados” vai ficando mais comum o diagnóstico do compositor Cartola: “De cada amor tu herdarás só o cinismo!”.

Ousemos, então, nadar em contracorrente. Ousemos aplicar em nossa vida aquela frase que a jovem mártir Santa Cecília dizia a seus algozes: “Os cristãos desprezam tudo o que parece ser valioso e não é nada, e conservam tudo o que parece ser nada e, no entanto, é tudo”. Por mais valiosos que pareçam ser os amores fáceis e egoísmos da vida, eles, no fundo, são nada, e só aumentam nosso vazio interior. E por mais custosa que pareça ser a doação de si que se vive no matrimônio, ela no fundo é tudo!

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