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A Busca pelo Mistério: Entre a Fé e a Fantasia

Vivemos em uma época de profundo fascínio pela literatura e cinema fantásticos, na qual histórias de mundos mágicos, criaturas sobrenaturais e universos alternativos capturam a imaginação de milhões. Esse fenômeno cultural reflete uma sede humana profunda pelo transcendente e pelo mistério que a modernidade secular parece ter deixado órfã. Entre as páginas de O Senhor dos Anéis e as telas de Game of Thrones, entre as salas de aula de Hogwarts e os pesadelos de Lovecraft, encontramos um território complexo onde fé e fantasia se entrelaçam, às vezes de forma harmoniosa, outras vezes em tensão. Para o cristão contemporâneo, navegar por esse universo de possibilidades narrativas exige mais do que simples aprovação ou rejeição: demanda o exercício criterioso do discernimento, capaz de reconhecer tanto as sementes de transcendência autêntica quanto os riscos de uma espiritualidade superficial ou desviada.

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A difusão de obras fantásticas (chamadas de ficção especulativa em língua inglesa, englobando fantasia, ficção científica e horror sobrenatural) na literatura e no cinema mostram o quanto somos atraídos pelo Mistério, mas pode fazer-nos pensar que esse Mistério é apenas fruto de nossa imaginação, esvaziando a verdadeira busca religiosa.

A ascensão desse gênero pode ser compreendida como uma resposta direta às crises de uma era marcada por guerras mundiais, secularização crescente e avanço do cientificismo. A imaginação busca preencher o espaço deixado pelas promessas das várias formas de racionalismo e do progresso. Uma busca contínua por transcendência, mesmo em narrativas aparentemente seculares, revela a “angústia da criação” humana e a necessidade de respostas para perguntas existenciais que a ciência, isoladamente, não pode fornecer.

Os grandes autores cristãos de fantasia. Também os autores cristãos foram atraídos pelas possibilidades artísticas e reflexivas da literatura fantástica. Os dois casos mais conhecidos são J.R.R. Tolkien e C.S. Lewis.

O primeiro nunca desejou fazer algo como “arte engajada” ou uma representação alegórica dos conteúdos da fé. Católico romano devoto, via a criação de seu mundo fictício, a Terra Média, como um ato de “subcriação”. A obra artística, ao imaginar uma realidade fictícia, emulava o ato criativo de Deus, e a própria beleza e coerência desta obra eram um argumento para a existência de um Criador. Considerava O Senhor dos Anéis, “fundamentalmente religiosa e católica”, mas de forma intrínseca, sem ser alegórica.

Já C.S. Lewis adotou uma abordagem mais explícita por meio da alegoria apologética. Sua intenção era preparar o leitor para entender conceitos como sacrifício e redenção. Assim, As Crônicas de Nárnia seria uma “suposição” de como o Evangelho se manifestaria em outro mundo.

Tolkien, que viveu sua fé intrinsecamente, via a criação como um reflexo de uma verdade mais profunda, na qual a beleza da obra apontava para a beleza do Criador. Lewis, um ex-ateu, via a apologética como uma necessidade e usava a alegoria como uma ferramenta pedagógica.

A oposição à religião. Do lado oposto, encontram-se autores que adotaram uma postura crítica explícita à religião organizada por meio da literatura fantástica. O caso mais emblemático é Philip Pullman, autor da trilogia Fronteiras do Universo (His Dark Materials, no original), cujo primeiro livro foi adaptado para o cinema no filme A Bússola de Ouro. Pullman se autodeclara um “ateu cristão” (!?!), afirmando não ver sinais de Deus no mundo, apesar de sua formação cristã. Suas obras retratam uma estrutura religiosa autoritária como antagonista e questionam a autoridade religiosa institucional.

Frequentemente, contudo, o que parece um ataque à religião em si é um ataque a uma forma de se viver a religião. O caso mais emblemático é o de Frank Herbert. Em Duna, ele realiza uma desconstrução de narrativas messiânicas, critica o fanatismo e apresenta a organização religiosa determinada a dominar todo o universo. Sua obra pode ser vista como um ataque frontal à religião ou como a denúncia dos erros da humanidade ao se desviar da religião verdadeira.

Bruxos, vampiros e outros monstros. Encantamentos, superstições e bruxarias sempre foram combatidos pela Igreja. Às vezes pelo motivo errado: acreditar que uma falsa crendice fosse realmente uma intervenção diabólica. Outras vezes pelo certo: ser uma ilusão que afasta as pessoas do Deus verdadeiro.

Mas, e quando essas superstições são usadas intencionalmente em tom ficcional, como acontece na série de Harry Potter, de J.K. Rowling, com os vampiros de Anne Rice (autora de Entrevista com o Vampiro) ou com as histórias de terror de H.P. Lovecraft? Muitas vezes, estas obras, mesmo que de forma não intencional, banalizam o sagrado, fazendo-o parecer mero produto da imaginação humana. Nesse sentido, as obras de Lovecraft, um ateu declarado que mostrava o terror que se esconde por trás do Mistério na ausência de Deus, pode não resultar tão corrosivas à seriedade dos conceitos religiosos quanto as de Neil Gaiman, autor da série Sandman, que mistura elementos cristãos, como anjos e demônios, com personagens mitológicos e de contos de fadas…

E quando essas histórias apresentam valores que são opostos àqueles vivenciados pelas comunidades cristãs, seja por conteúdos erotizados (como se viu na série televisiva de Game of Thrones), famílias disfuncionais (cada vez mais comuns no cinema e na TV) ou o elogio à violência e ao punitivismo justiceiro (frequente entre super-heróis)?

Não se pode dizer que isso não possa representar um problema, particularmente para crianças e jovens em formação, mas também não se pode imaginar ameaças onde não existem… Os dois extremos só potencializam os problemas. 

O caminho do discernimento. A rejeição automática das obras de fantasia não representa um juízo cristão maduro. Não permite reconhecer o que de bom existe nelas e muitas vezes estimula a curiosidade e até a crítica destrutiva dos valores da fé. É necessário entender, em primeiro lugar, que representam uma provocação, no sentido positivo do termo, para mergulharmos mais a fundo no sentido do fenômeno religioso para cada um de nós. São obras que se alimentam do nosso fascínio pelo Mistério do mundo e de nossos questionamentos sobre as diferentes respostas religiosas a este Mistério – dúvidas e inquietações que residem no coração humano e merecem resposta honesta.

A questão central do discernimento cristão, contudo, não reside em uma comparação intelectual entre a mensagem católica e o conteúdo destas obras, mas sim na correspondência entre a visão de Deus e da religião apresentada nelas e aquela encontrada na vida real. Uma pessoa com uma justa vivência cristã facilmente reconhecerá os limites da ficção quando esta apresenta um mundo incongruente com sua experiência genuína do divino e da vida eclesial.

O perigo surge quando obras de ficção amplificam problemas reais, parecendo refletir e aprofundar contradições e decepções que a pessoa encontra em sua vivência religiosa cotidiana. Nesses casos, a literatura pode catalisar uma crise de fé e estimular a descrença. Mas, nessas situações, pouco adianta criticar as obras ficcionais: a solução real é nos ajudarmos mutuamente a viver uma experiência sempre mais verdadeira e plena do encontro com Cristo – pois é nesse encontro, e não na reflexão abstrata, que nós e nossos irmão poderemos descobrir aquilo que realmente corresponde ao coração humano.

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